A esclerose múltipla (EM) é doença crônica, que cursa com lesões desmielinizantes no sistema nervoso central disseminadas no tempo e no espaço. Trata-se de doença com prevalência maior na população feminina, em que as manifestações clínicas podem variar conforme as alterações hormonais. Atualmente, a EM apresenta um arsenal terapêutico imunossupressor amplo para modificação do curso natural da doença.
Considerando o universo feminino, principalmente no que cerne a planejamento familiar, a Dra. Annette Wundes, do Centro de Esclerose Múltipla da University of Washington, ministrou uma aula sobre o tema no Annual Meeting da American Academy of Neurology de 2025, em San Diego.
Mulher com EM pode engravidar?
O primeiro anúncio da palestra é desmistificar o mito de que pessoas com esclerose múltipla não podem engravidar. Estudos já demonstraram que a gestação da mulher com esclerose múltipla pode ser segura, viável e sem consequências negativas de longo prazo na maioria dos pacientes. Por fim, a amamentação não piora a progressão de EM e pode ser inclusive protetora contra recorrência de surtos clínicos no puerpério.
Ainda assim, a gestação na mulher com esclerose múltipla é complexa e exige certa cautela. Existe uma variedade de considerações sobre a segurança das drogas modificadoras da doença (DMTs) em relação à gravidez e amamentação, em que há uma lacuna, infelizmente, sobre diretrizes claras no manejo dessas DMTs durante essas fases da mulher. Além disso, há um aumento na taxa de surtos clínicos nos primeiros 3 meses após o parto (sendo, por vezes, potencialmente graves). Um outro ponto que proporciona uma complexidade se destaca principalmente em populações vulneráveis e com menor acesso aos cuidados, nas quais persistem diversas necessidades não atendidas durante esse período feminino e desfechos clínicos desfavoráveis.
Essa complexidade acaba sendo refletida na experiência de atendimento das mulheres com esclerose múltipla, principalmente diante de lacunas educacionais na área. Muitas mulheres, por terem esclerose múltipla, evitam gestar com receio de interromper o uso de DMTs – quando não possuem a informação de opções de DMTs que podem ser utilizadas durante a fase gestacional. Ainda que abaixo da média nacional norte-americana, estudos mostram que mais de 25% das gestações em mulheres com EM não foram planejadas (27-34%). Em uma era terapêutica mais recente, entre pessoas que engravidaram após o diagnóstico de EM, 58% escolheram a DMT com base nos planos para uma futura gestação.
A orientação ideal para mulheres com EM que desejam gestar, a fim de que possam ter melhores desfechos em longo prazo, é considerar esse planejamento a partir de estabilidade da doença por pelo menos 1 ano. Evidências demonstraram maior risco de incapacidade em até 6 anos após a gestação quando essas pacientes apresentaram recaída no ano anterior à gravidez.
Esclerose múltipla durante a gestação
Os surtos clínicos de esclerose múltipla podem, sim, ocorrer durante a gestação (mesmo que alguns estudos mostrem uma menor tendência para tal durante a fase gestacional). Em casos de solicitação de neuroimagem, ressonância de crânio são seguras durante a gestação (principalmente as de 1.5 Tesla) ainda que seja interessante evitar o uso de contraste venoso com gadolínio.
Em circunstâncias de surto clínico de EM na gestação, a terapia de fase aguda vai variar conforme a gravidade desse surto:
▪ Surto leve: Terapia expectante.
▪ Surto moderado-incapacitante: Pulsoterapia com metilprednisolona 1000mg intravenosa (ou equivalente oral) entre 3-5 dias no 2º e 3º trimestre de gestação. As evidências durante o 1º trimestre são controversas. Se possível recomendado evitar dexametasona.
▪ Surto grave: Avaliar necessidade de plasmaférese, imunoglobulina intravenosa ou rituximabe.
Quando devo suspender a DMT na gestante com EM?
A primeira geração de DMTs, como acetato de glatiramer e interferon-beta, não há preocupações relevantes durante o período gestacional.
Quanto às DMTs de formulação oral, sejam pequenas moléculas (dimetil-fumarato, teriflunomida, cladribina) ou sejam moduladores de receptor S1P (fingolimoide, ozanimod, siponimod, ponesimod) são contraindicados no período gestacional. Inclusive, recomenda-se, junto à prescrição desses medicamentos, uso de métodos contraceptivos tanto durante o tratamento como até após a suspensão (cujo tempo de uso irá variar conforme o “washout” de cada uma dessas drogas).
Já as DMTs da classe de anticorpos monoclonais requerem cautela no período gestacional, podendo variar a recomendação em bula conforme agência regulatória (ex. FDA ou EMA, como apresentados na palestra) e conforme o período de “washout” da DMT.
Alemtuzumabe, natalizumabe, ocrelizumabe, ofatumumabe, de acordo com o FDA, não possuem dados suficientes para providenciar uma recomendação clara; enquanto, de acordo com o EMA, podem ser continuados caso os benefícios potenciais justifiquem o risco potencial ao feto. O rituximabe, para ambas as agências regulatórias, pode ser continuado caso os benefícios potenciais justifiquem o risco potencial ao feto. O ublituximabe, por sua vez, não apresenta dados de segurança para uso em gestantes segundo o FDA e deve ser evitado a não ser que o benefício potencial justifique o risco potencial ao feto segundo o EMA.
Em caso de usos desses anticorpos monoclonais cujo benefício potencial não justifica o risco potencial ao feto, é necessário o uso de métodos contraceptivos durante o uso dessas medicações e inclusive a sua manutenção até garantir o período de “washout” dessas DMTs – conforme já mencionado. Esse tempo de contracepção após a suspensão da DMT varia de droga para droga e inclusive pode apresentar recomendações diferentes de acordo com a agência regulatória (conforme ilustrado em tabela abaixo).
Evitar gestação da última dose do anticorpo monoclonal por pelo menos: | ||
FDA | EMA | |
Rituximabe | 12 meses | 12 meses |
Ocrelizumabe | 6 meses | 12 meses |
Ofatumumabe | 6 meses | 6 meses |
Ublituximabe | 6 meses | 4 meses |
Portanto, a manutenção ou suspensão dos anticorpos monoclonais durante o período gestacional deve ser realizada a partir de aconselhamento individualizado de caso a caso com decisões compartilhadas entre médico e paciente.
Conciliação entre DMT e amamentação
As DMTs de primeira geração (acetato de glatiramer e interferon beta), novamente, podem ser utilizadas durante o período de amamentação.
Já as DMTs de formulação oral (pequenas moléculas e moduladores de receptor S1P) são todas contraindicadas pelo EMA. Já o FDA contraindica a teriflunomida e cladribina das drogas de formulação oral, enquanto as outras DMTs é preciso considerar as necessidades clínicas do paciente e os potenciais efeitos adversos.
Os anticorpos monoclonais, por sua vez, apresentam bulas e diretrizes restritivas, apesar de dados emergentes de segurança sugerirem maior tolerabilidade em contextos como amamentação.
A palestrante inclusive aconselha, em casos de dúvida, acessar a ferramenta online LactMed da National Library of Medicine. Em todos os casos, a discussão sobre a prescrição das DMTs deve ser realizada com a pacientes, ponderando os seus riscos e benefícios.
Comentários finais
O planejamento familiar na mulher com esclerose múltipla deve ser conduzido de forma individualizada, com base em evidências atualizadas e decisão compartilhada. Com o avanço das DMTs e maior conhecimento sobre segurança na gestação e lactação, é possível conciliar controle da doença com o desejo de engravidar, desde que haja orientação adequada, estabilidade clínica e seguimento especializado.
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