Caso clínico: Medicina e poesia salvam
Na série especial “Histórias de Cuidado: Relacionamento médico-paciente”, compartilhamos relatos de médicos sobre casos que vivenciaram em sua rotina e como lidaram com cada situação de forma gentil e empática.
O objetivo é explorar a Medicina sob uma perspectiva mais subjetiva, revelando as nuances do cuidado com o paciente.
Boa leitura!
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Caso de hoje
No CTI de um hospital terciário, uma paciente de 70 anos interna por dispneia, fadiga e dor torácica.
Começa uma investigação, em que as elucidações diagnósticas evoluem com a piora sintomática e a situação fica mais grave e dramática a cada dia.
Ao final de uma semana, drenagem de tórax, drenagem pericárdica, suporte de oxigênio e biópsia de uma massa mediastinal recém descoberta, veio o diagnóstico de carcinoma de pequenas células de pulmão.
A proposta da oncologia é começar quimioterapia imediatamente, com redução importante da dose, tendo em vista a fragilidade da paciente.
Conversas difíceis são marcadas. O risco de piora clínica e óbito com o tratamento é alto. No entanto, sem o tratamento esse risco é certo. Algo precisa ser feito, mas família e paciente precisam estar cientes de toda a situação.
Após algumas visitas e explicações sobre o tratamento – benefícios, riscos e possíveis efeitos colaterais – para a paciente, para o filho e, em alguns momentos, para ambos, muito me incomoda o fato de que, embora pareça estar compreendendo bem, a paciente pouco interage, não fixa o olhar, responde pouco o que se pergunta.
Dor? Tristeza? Desorientação? Negação?
Ainda não sei dizer.
Na véspera do tratamento, fiz uma nova visita. Achei importante discutir pela última vez nossa conduta, esclarecer qualquer dúvida que tenha passado.
Ao final da explicação, resolvi sanar minha curiosidade e perguntar o significado de uma tatuagem diferente que ela tinha no braço. E ela me respondeu que representava Fernando Pessoa, por quem era apaixonada desde muito nova.
Nesse momento, me abaixei e disse baixinho: “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor.” Hoje começamos nossa trajetória no Mar Português.
E aqui ela levantou o rosto com o maior e único sorriso que eu vi desde o primeiro dia, e concordou com lágrimas nos olhos.
Foi aí que entendi que pela primeira vez, depois de todas aquelas explicações técnicas, que finalmente consegui alcançá-la e falamos o mesmo idioma.
A poesia foi capaz de chegar aonde a técnica, a ciência e até a empatia não chegaram.
Duas semanas depois
A quimioterapia foi bem tolerada, a paciente apresentou importante melhora clínica e foi transferida para o quarto.
Quando fui vê-la, a resposta ao meu bom dia foi um surpreso:
– Ué, como foi que você me achou aqui??
Mostrei meu mapa de pacientes e brinquei que mesmo que ela tentasse se esconder no banheiro eu ainda a encontraria.
Sorrisinho. Já sei que hoje ela está melhor.
Ao final, saindo, já chegando na porta ela grita:
– Ei dra, valeu a pena me encontrar?
Sorriso maroto de canto de boca. Expectativa pela resposta. Essa eu não posso errar.
– “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Sorrisão de lá. Sorrisão daqui.
Acho que acertei.
Saio do quarto com a certeza da melhora evolutiva e a empolgação pela conversa do dia seguinte.
O que podemos aprender disso tudo?
Na medicina, somos ensinados a prezar pela técnica acima de tudo: analisamos sintomas e exames; colhemos histórias sempre focados nos possíveis diagnósticos e síndromes. E estamos certos em agir assim, desde que não deixemos de realmente escutar e observar a pessoa que está por trás daquela doença.
É importante lembrar que tratamos pessoas. E não doenças.
E aqui aprendi que a quimioterapia pode salvar. Mas a poesia também.
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