Você já se sentiu sozinho no meio da multidão? Já esteve em uma sala cheia de gente, de vozes, de pacientes, de plantonistas, e ainda assim sentiu que ninguém estava realmente com você?
É comum ouvirmos que médicos não estão sozinhos. Há sempre alguém esperando por nós: pacientes, familiares, colegas. Sempre alguém nos chamando, pedindo ajuda, contando conosco. Sempre cercados, sempre ocupados. Mas, muitas vezes, sempre sozinhos.
A solidão do médico não é aquela que se faz de silêncio ou ausência física. É uma solidão mais sutil, mais cruel. É a solidão de carregar o mundo nas costas sem ninguém com quem dividir o peso. É a solidão de tomar decisões difíceis e, ainda assim, dormir com elas. De estar sempre disponível para os outros, mas raramente ser escutado de verdade.
Na medicina, o chamado vem cedo. Muitos de nós crescemos ouvindo que essa é uma profissão de missão. E talvez seja mesmo. Mas missão também cansa. Missão também pesa. E, no meio da correria dos plantões, da pressão por produtividade, das telas, protocolos e metas, muitos médicos vão se esvaziando por dentro — até se tornarem especialistas em esconder a exaustão por trás de um sorriso ensaiado.
Solidão e seus reflexos na saúde
Estudos recentes têm mostrado o que já se sussurra nos corredores há anos: a solidão entre médicos é real e crescente. Em uma pesquisa com médicos de família, quase metade (44,9%) relatou sentimentos de solidão — e essa solidão não vinha sozinha. Ela estava acompanhada de burnout, de sintomas depressivos, de um cansaço que não passa com uma noite de sono (Ofei-Dodoo et al., 2021).
Essa solidão, muitas vezes, é alimentada por mudanças profundas e silenciosas. Lembra das antigas salas de jantar dos médicos? Aquelas em que cabia o desabafo do dia, a risada nervosa depois de um caso difícil, o silêncio entre um café e outro? Elas estão sumindo. No lugar, vieram ambientes mais técnicos, mais impessoais. E, com isso, perdemos espaços que, sem que percebêssemos, sustentavam nossa humanidade (Frey, 2018).
A frieza da modernidade
Ser médico virou, cada vez mais, uma tarefa solitária. A fragmentação do cuidado, a divisão rígida das funções, os sistemas eletrônicos que medem produtividade mas ignoram emoções — tudo isso vai nos afastando uns dos outros. A conversa no corredor virou protocolo. A troca entre colegas virou relatório. E, no fim do dia, sobra pouco espaço para sermos gente.
Isso não é um problema individual. É estrutural. Somos parte de um sistema que cobra demais e acolhe de menos. Que valoriza quem aguenta tudo calado. Que romantiza o sofrimento como se ele fosse parte do pacote. Mas não deveria ser.
Muitos médicos não têm sequer com quem conversar sobre isso. Faltam recursos, faltam espaços seguros. Falta reconhecimento de que essa solidão existe — e que ela mata. Mata o prazer de exercer a medicina. Mata o vínculo com os pacientes. E, em casos extremos, mata a própria pessoa que um dia escolheu cuidar.
Por isso, é urgente que a gente fale sobre isso. Entre nós. Com os gestores. Com as instituições. É urgente que recuperemos os espaços de encontro, de escuta, de presença. Que tenhamos coragem de dizer: eu também me sinto assim. E que possamos construir, juntos, uma medicina mais humana — para os pacientes, mas também para nós.
Porque ninguém deveria salvar vidas enquanto sente que a sua está se perdendo em silêncio.
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