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Psiquiatria21 setembro 2022

Automutilação em crianças e adolescentes: o que precisamos saber?

Embora a automutilação não suicida não envolva intenção de morrer ou alta letalidade, tem sido consistentemente associada ao comportamento suicida.

O comportamento autolesivo é um fenômeno amplo que envolve autolesão não suicida, tentativas de suicídio e suicídio, com os dois últimos caracterizando o comportamento suicida. Embora a autolesão não suicida não envolva intenção de morrer ou alta letalidade, tem sido consistentemente associada a esse comportamento.

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O comportamento suicida é complexo, varia em gravidade e abrange várias ações executadas por uma pessoa que podem levar a óbito, incluindo ideação suicida (pensamentos sobre a morte e o desejo de estar morto), planos de suicídio (pensamentos sobre danos que possam resultar em morte), comunicações ou ameaças sobre suicídio (transmitindo ou expressando pensamentos sobre a intenção explícita ou implícita de suicídio), tentativas de suicídio (comportamento autoinfligido com o objetivo de morrer, porém, com um resultado não fatal) e suicídio. O suicídio envolve um ato deliberado de violência autodirigida, cujo resultado é a morte.

menina olhando para baixo no escuro pensando em automutilacao

Suicídio

O suicídio é uma das principais causas de morte no mundo, com aproximadamente 1 milhão de mortes por ano; corresponde a mais da metade de todas as mortes violentas no mundo e é atualmente a segunda principal causa de morte na faixa etária de 15 a 29 anos. No entanto, o suicídio é encontrado em todas as faixas etárias, com uma tendência crescente observada entre os adolescentes, tornando-o um problema de saúde pública relevante.

As informações disponíveis sobre o comportamento suicida muitas vezes carecem de padronização, devido a questões culturais, legais e burocráticas que variam amplamente em diferentes regiões do mundo e afetam a pesquisa em todas as faixas etárias. Na tentativa de melhorar a pesquisa nessa área, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) propôs uma padronização dos termos relacionados à violência autodirigida, definindo suicídio como “morte causada por comportamento prejudicial autodirigido com qualquer intenção de morrer como resultado do comportamento”. Nas crianças, no entanto, permanecem questões sobre como caracterizar e avaliar o comportamento suicida.

Comportamento autolesivo e mortalidade

Dessa forma, com o objetivo de descrever e analisar dados sobre comportamento auto lesivo e a mortalidade relacionada em crianças menores de 10 anos no Brasil, Studart-Bottó e colaboradores (2019) conduziram o estudo Self-injurious behavior and related mortality in children under 10 years of age: a retrospective health record study in Brazil, publicado em agosto no Brazilian Journal of Psychiatry.

Os autores realizaram um estudo retrospectivo descritivo utilizando dados secundários de atenção à saúde pública extraídos do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) e Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) no Brasil. Os autores disponibilizaram os bancos de dados para acesso online.

Resultados

Studart-Bottó e colaboradores (2019) descreveram os seguintes resultados:

  • No Brasil, de 1998 a 2018, foram registradas 11.312 internações de crianças menores de 10 anos no sistema público de saúde (SIH) resultantes de comportamento auto lesivo (automutilação intencional – CID-10 X60-X84). Destes, 65 morreram (taxa de mortalidade de 0,56). O grupo de óbitos incluiu 42 meninos, 28 com idade entre 1 e 4 anos, 21 entre 5 e 9 anos e 16 menores de 1 ano. Infelizmente, o SIH não inclui informações clínicas e sociodemográficas adicionais sobre esses pacientes;
  • As internações hospitalares foram mais frequentes na faixa etária de 1 a 4 anos, com 6.028 casos (53,3%), e foram menos frequentes em crianças menores de 1 ano, com 911 casos (8,1%). Em todas as faixas etárias, os meninos foram predominantes;
  • Das cinco regiões brasileiras, o Sudeste teve o maior número de internações, com 4.967 casos (43,9%). O menor número foi registrado no Centro-Oeste, com 961 casos (8,5%);
  • A maior proporção de internações foi causada por intoxicação por substâncias médicas, com 4.310 casos (38,1%); destes, 2.007 (46,6%) ocorreram na região Sudeste. O envenenamento por substâncias não médicas foi responsável por 3.136 casos (27,7%), dos quais 1.556 (49,6%) ocorreram no Sudeste. O menor número de envenenamento por substâncias não médicas foi registrado na região Norte, com 176 casos (5,6%);
  • O corte/perfuração de objetos representou 1.005 casos (8,9%), variando de 68 casos (6,8%) no Centro-Oeste a 511 casos (50,8%) no Sudeste. Em 1.791 internações (15,8%), o método de automutilação não foi especificado; destes, 765 (42,7%) foram registrados na região Norte;
  • De 1996 a 2016, foram registradas no SIM 91 mortes resultantes de comportamento auto lesivo em crianças menores de 10 anos de idade. Destes, 81 (89%) referiram-se a crianças entre 5 e 9 anos, nove (9,9%) referiram-se a crianças de 1 a 4 anos e 1 (1,1%) referiu-se a uma criança com menos de 1 ano de idade. A maioria dos casos envolveu meninos, totalizando 74 casos (81,3%). A região Nordeste teve o maior número de incidentes, com 34 casos (37,4%), e o Centro-Oeste, o menor número, sete casos (7,7%). Segundo o SIM, 74 crianças eram do sexo masculino, sendo a maioria de cor parda (n = 39) e 28 brancas. Em relação ao local da morte, 37 morreram em casa, 32 no hospital, um em outra clínica de saúde e 21 deles foram encontrados em áreas alternativas (rodovias públicas e outras áreas).

Conclusões

De acordo com os autores, este parece ser o primeiro estudo brasileiro que descreve e analisa dados sobre comportamento autolesivo e a mortalidade relacionada em crianças menores de 10 anos no Brasil. Studart-Bottó e colaboradores (2019) relatam que, embora esses dados enfatizem a vulnerabilidade das crianças brasileiras, o real significado dessas informações ainda precisa ser esclarecido.

Os resultados encontrados pelos pesquisadores mostram a necessidade de melhor descrever e entender o verdadeiro significado do comportamento autolesivo em crianças. Os autores questionam se é resultado de negligência ou reflete uma ação intencional por parte dos pais e cuidadores, ou se esses dados também refletem o comportamento suicida nessa faixa etária. Outra questão levantada pelos autores é: com que idade a criança é capaz de entender o significado da morte e desejá-la? Algumas hipóteses podem ser levantadas – um adulto pode deliberadamente relatar errado o motivo da hospitalização ou morte. Nesse sentido, negligência ou infanticídio seriam ocultados. Outra hipótese seria a ocorrência real de autolesão não suicida ou mesmo comportamento suicida.

Os pesquisadores destacam que os dados obtidos podem refletir a falta de padronização de critérios para classificar eventos dessa natureza nessa faixa etária, criando assim a necessidade de estudos específicos nessa área. Portanto, é necessário treinamento profissional na coleta e interpretação dos dados do SIB, além da correta identificação e registro público das tentativas de suicídio em crianças. Novos estudos precisam avaliar os fatores de risco para esse comportamento no Brasil.

Independentemente de qualquer fator, os autores frisam que a literatura sobre suicídio infantil reconhece que as cognições suicidas são preditoras de uma futura tentativa de suicídio. Além disso, a magnitude da influência exercida pela psicopatologia e pelo histórico familiar de tentativas de suicídio é diferente na infância e na pré-adolescência. Existem também evidências de que o desenvolvimento de pensamentos suicidas em crianças está associado a vulnerabilidades cognitivas específicas, como estilo inferencial negativo, questões de regulação emocional e ocorrência de traumas na infância com recursos de enfrentamento ineficazes.

Os autores reconhecem algumas limitações: embora o estudo revele dados importantes sobre o comportamento auto lesivo em crianças menores de 10 anos de idade no Brasil pela primeira vez, o estudo é retrospectivo e os dados foram extraídos das bases de dados oficiais no país. Nenhuma informação estava disponível no histórico de saúde da criança ou em aspectos como abuso sexual, negligência dos pais e cuidadores ou outros fatores de risco para autolesão não suicida ou comportamento suicida. Existe também a possibilidade de subnotificação e de erros de classificação nos diagnósticos primários e secundários.

No entanto, o estudo mostra a importância do quanto as crianças precisam de supervisão. Quanto menor a idade, maior o cuidado e a atenção necessários à criança. Muitas lesões na infância resultam de negligência do cuidador, como não manter produtos químicos, medicamentos, armas de fogo e objetos perfurantes fora do alcance das crianças e que podem levar à morte. Nesse sentido, a falta de pleno conhecimento dos riscos domésticos pode ser a causa desse comportamento perigoso, como a ingestão de um produto ou substância sem estar ciente da possível toxicidade.

A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), em parceria, organizam nacionalmente a campanha Setembro Amarelo desde 2014. Oficialmente, o dia 10 de setembro é o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio, mas a campanha acontece durante todo o ano.

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Referências bibliográficas

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