A alergia à proteína do leite de vaca (APLV) afeta cerca de 1% das crianças com menos de 2 anos, mas a taxa de prescrição de fórmulas hipoalergênicas é até 15 vezes maior do que o esperado em países como Reino Unido, Estados Unidos, Noruega e Austrália. Dados nacionais não estão amplamente disponíveis no momento, mas o crescente número de diagnósticos nos últimos anos é alarmante e requer cuidado. Isso sugere um aumento no diagnóstico excessivo dessa condição, o que pode resultar em consequências negativas, como:
- Uso desnecessário de fórmulas hipoalergênicas;
- Desmame precoce e impactos psicológicos das mãe/cuidadores;
- Maior custo para os sistemas de saúde devido à prescrição inadequada de fórmulas especiais.
Um estudo utilizou uma coorte de crianças do ensaio clínico BEEP (Barrier Enhancement for Eczema Prevention) para investigar o que poderia estar por trás desse aumento no número de casos. O estudo foi baseado em uma análise retrospectiva de dados coletados no ensaio clínico BEEP. Algumas informações sobre o desenho do estudo:
- População: 1.394 crianças nascidas na Inglaterra entre 2014 e 2016.
- Critérios de APLV sobrediagnosticada: A APLV foi classificada em três categorias:
- Relato dos pais – Pais relataram que seus filhos tiveram reações ao leite.
- Prontuários médicos – Diagnósticos de hipersensibilidade ao leite feitos por médicos de atenção primária.
- Prescrição de fórmulas hipoalergênicas – Uso de fórmulas especiais sem um diagnóstico formal.
- Avaliação do Diagnóstico: Crianças com suspeita de APLV passaram por testes formais, incluindo testes cutâneos, histórico clínico e testes de provocação oral (TPO) para confirmar ou descartar a condição.
Resultados Principais
Prevalência do Excesso de Diagnóstico
- Apenas 1,4% das crianças foram diagnosticadas formalmente com APLV.
- 16,1% dos pais relataram hipersensibilidade ao leite nos filhos.
- 11,3% tiveram registros médicos de hipersensibilidade ao leite sem confirmação formal.
- 8,7% receberam prescrição de fórmula hipoalergênica sem diagnóstico confirmado.
Isso indica que um grande número de crianças sem APLV estava sendo tratadas como se tivesse a condição.
Fatores de risco para o diagnóstico excessivo
Os principais fatores associados ao excesso de diagnósticos de APLV foram:
- Prescrição elevada de fórmulas hipoalergênicas por médicos de atenção primária
- Crianças atendidas por médicos que prescreviam muitas fórmulas hipoalergênicas no ano anterior ao nascimento tinham maior probabilidade de receber o diagnóstico excessivo de APLV.
- Uso materno de antibióticos durante a gravidez
- O uso de antibióticos pelas mães foi um fator associado ao excesso de diagnóstico de APLV (OR 2,36; IC 95% 1,33–4,18; p=0,003).
- De acordo com os autores, isso pode estar relacionado a um aumento na procura por serviços de saúde e na percepção de vulnerabilidade infantil.
- Alimentação com fórmula desde o nascimento
- Crianças que foram exclusivamente alimentadas com fórmula tiveram maior chance de receber prescrição de fórmula hipoalergênica (OR 2,50; IC 95% 1,31–4,75; p=0,005).
- Características das reações relatadas
- Muitas crianças que receberam diagnóstico excessivo apresentavam sintomas gastrointestinais inespecíficos, como diarreia e refluxo.
- Segundo os dados apresentados pelos autores, apenas 40% das crianças com diagnóstico excessivo tinham sintomas cutâneos, comparado com 94% das crianças realmente alérgicas ao leite.
Impactos e implicações
Uso de fórmulas hipoalergênicas
- O uso de fórmulas hipoalergênicas durou em média 10 meses e a quantidade consumida foi de 272 litros por criança.
- O custo médio das prescrições foi de £1.214 por criança, o equivalente a R$8.728,49, gerando um impacto econômico significativo no sistema de saúde.
Consequências do diagnóstico excessivo
- Exposição desnecessária a fórmulas hipoalergênicas, que podem impactar a microbiota intestinal e contribuir para o aumento da obesidade.
- Restrição alimentar materna, o que pode levar a deficiências nutricionais e estresse psicológico para as mães.
- Geração de ansiedade nos pais, aumentando a dependência do sistema de saúde sem necessidade real.
Conclusão e recomendações
O estudo confirma que há um excesso de diagnóstico de APLV em crianças pequenas, especialmente associado à prescrição inadequada de fórmulas hipoalergênicas. Os principais fatores de risco são a prática médica de prescrição excessiva, o uso materno de antibióticos durante a gravidez e a alimentação exclusiva com fórmula desde o nascimento.
Recomendações
- Melhor capacitação dos profissionais de saúde
- Médicos e pediatras devem ser mais criteriosos no diagnóstico de APLV e evitar prescrição desnecessária de fórmulas hipoalergênicas.
- Promoção da amamentação
- Incentivar a amamentação pode reduzir a necessidade de fórmulas especiais e diminuir o excesso de diagnósticos.
- Uso de critérios mais rigorosos para diagnóstico
- Implementar diretrizes mais específicas e baseadas em evidências para diferenciar sintomas gastrointestinais comuns de uma verdadeira APLV.
- Redução da prescrição de fórmulas hipoalergênicas
- Regulamentar a prescrição de fórmulas para garantir que sejam utilizadas apenas por crianças com diagnóstico confirmado.
Mensagem prática
Este estudo alerta para um problema crescente na prática pediátrica e enfatiza a necessidade de uma abordagem mais criteriosa para o diagnóstico de APLV. A educação dos profissionais de saúde e dos pais, juntamente com políticas para restringir a prescrição indiscriminada de fórmulas hipoalergênicas, são medidas fundamentais para reduzir o excesso de diagnósticos.
Nos últimos anos o número de centros para realização de TPO no Brasil cresceram e, de longe, esse deve ser um excelente caminho a ser seguido. A realização do TPO é fundamental para o diagnóstico mais assertivo, além de ser utilizado para avaliação de tolerância. Para as alergias não IgE-mediadas, com prevalência de sintomas gastrointestinais, o gastroenterologista pediátrico é o médico mais bem treinado para avaliar tais pacientes.
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