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Pediatria11 dezembro 2024

Manejo da dor abdominal em crianças

As causas comuns de dor abdominal em crianças e as abordagens para diagnóstico e tratamento.

Este conteúdo foi produzido pela Afya em parceria com Mantecorp Farmasa de acordo com a Política Editorial e de Publicidade do Portal Afya.

Introdução

A dor abdominal é uma queixa bastante recorrente em emergências pediátricas, sendo relatada por um terço das crianças em idade escolar.1 Neste contexto, é possível classificá-las em dois grupos principais: o primeiro inclui pacientes com dor aguda associada a um diagnóstico específico ou a um diagnóstico gastrointestinal estrutural, como doença inflamatória intestinal ou apendicite. Por outro lado, no segundo grupo, os pacientes não têm uma causa evidente e identificável para sua dor. Ela é comumente caracterizada como dor abdominal indiferenciada, definida como uma manifestação álgica sem que haja um diagnóstico que explique adequadamente a sua ocorrência. Este grupo abrange pacientes com manifestações clínicas agudas e crônicas.2 No presente texto, discutimos causas comuns de dor abdominal em crianças e abordagens gerais para diagnóstico e tratamento dessa condição, com foco nos distúrbios de dor abdominal funcional (DDAF) e no uso da escopolamina nesses pacientes.

Dor abdominal aguda

A dor abdominal aguda é um sintoma relevante de diversas condições clínicas que variam desde doenças leves e autolimitadas, como constipação, gastroenterite e infecções do trato urinário, a condições com risco de morte e que exigem cirurgia urgente, como é o caso de apendicite, hérnia inguinal encarcerada, invaginal intestinal, obstrução intestinal, torção testicular e volvo. No caso de meninas adolescentes, diagnósticos diferenciais também incluem gravidez ectópica, ruptura de cisto ou torção ovariana. É importante lembrar que doenças sistêmicas também podem cursar com dor abdominal aguda, como é o caso da cetoacidose diabética. Portanto, a conduta terapêutica apropriada e definitiva da dor abdominal aguda depende de um diagnóstico diferencial preciso e oportuno da etiologia, por meio de uma anamnese detalhada, exame físico completo e exames complementares quando houver indicação.3

Dor abdominal crônica (DAC)

A DAC é comum em crianças e adolescentes, sendo definida como dor persistente ou recorrente ou com duração superior a três meses.4 Dados da literatura mostram que a sua prevalência varia de 0,5 a 19%.5 Algumas revisões sistemáticas relatam uma prevalência de 8,4% a 13,5%. É provável que essas diferenças estejam relacionadas a diferenças nas populações estudadas, incluindo localização geográfica, e o uso de diversas definições de dor crônica. Entretanto, em recente revisão sistemática com metanálise, Chambers e colaboradores (2024) descreveram uma prevalência global de DAC de 17,3% em crianças e adolescentes de 0 a 19 anos, utilizando os critérios da Classificação Internacional de Doenças décima primeira edição (CID-11).4

De acordo com o Comitê de DAC da North American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (NASPGHAN) e o Subcomitê de DAC da American Academy of Pediatrics (AAP), a DAC é funcional na maioria das crianças, isto é, sem evidência objetiva de um distúrbio orgânico subjacente.6 De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria, somente 5 a 10% dos casos de DAC em pediatria têm origem orgânica.5 Conforme os critérios de Roma IV de 2016, os chamados distúrbios de dor abdominal funcional (DDAF) consistem em um conjunto de distúrbios gastrointestinais crônicos com dor proeminente e cujos sintomas não podem ser atribuídos a outra condição após avaliação médica apropriada.2,7

O diagnóstico de DAC pode ser bastante desafiador, exigindo a diferenciação entre causas orgânicas e funcionais. Para tanto, é necessária uma história clínica detalhada, um exame físico minucioso e a indicação criteriosa de exames complementares, prestando atenção especial a sinais de alerta para doenças orgânicas. Dores que despertam o paciente à noite ou interrompem atividades prazerosas sugerem causa orgânica. O exame físico deve avaliar detalhadamente o crescimento pondero-estatural e uma avaliação laboratorial básica é recomendada (incluindo hemograma, sumário de urina e parasitológico de fezes). Apesar de controversa, a sorologia para doença celíaca é sugerida pelos critérios de Roma IV, e, dependendo da história, exames adicionais como amilase, lipase, função tireoidiana, proteína C reativa (PCR), velocidade de hemossedimentação (VHS) podem ser necessários, sendo que a melhora dos sintomas com exclusão da lactose aponta para má absorção. Exames radiológicos de rotina, como ultrassonografia, não são mais indicados em pacientes sem evidências clínicas de causa orgânica.5 A campanha Choosing Wisely, por exemplo, recomenda que as tomografias computadorizadas não são necessárias na avaliação de rotina da dor abdominal.8

Distúrbios de dor abdominal funcional (DDAF)

Os DDAF representam um conjunto de condições definidas por alterações morfológicas e fisiológicas que envolvem tanto trato gastrointestinal (TGI) quanto o sistema nervoso central (SNC). Atualmente, são chamados também de transtornos de interação intestino-cérebro. Os DDAF são frequentes e sua prevalência relatada na literatura é de 3 a 16% dependendo da idade, do sexo e da localização geográfica. Nos últimos anos, com maiores conhecimentos sobre a etiopatogenia e a fisiopatologia, sabe-se que as DDAF abrangem componentes intestinais (como alterações na mucosa e nas respostas imunes do hospedeiro, distúrbios da motilidade do intestino e hipersensibilidade visceral, além de possíveis alterações no microbioma intestinal normal), fatores centrais (como aspectos psicológicos, sensibilização e/ou diferenças na conectividade ou atividade de certas regiões cerebrais), bem como fatores extrínsecos (como infecções). Particularmente, a interrupção do eixo microbiota-intestino-cérebro parece ter um papel de destaque.9,10

Os subtipos de DDAF são: dispepsia funcional, síndrome do intestino irritável, enxaqueca abdominal e dor abdominal funcional sem outra especificação.5,7 Embora cada subtipo seja reconhecido como uma entidade separada, há algum grau de sobreposição entre eles.11

As queixas álgicas dos DDAF costumam ser epigástricas ou periumbilicais e raramente se irradiam. Os episódios podem durar de minutos a horas, sendo intercalados por períodos de bem-estar, ocorrendo durante o dia e podendo ser intensas a ponto de causar choro e interromper atividades habituais; podem estar presentes: palidez, náuseas, vômitos e sudorese.5

O diagnóstico das DDAF é um grande desafio, entretanto, deve ser baseado, principalmente, nas manifestações clínicas e na exclusão de causas orgânicas, com atenção para a indicação de procedimentos diagnósticos invasivos que sejam realmente necessários. O tratamento consiste, sobretudo, em estratégias combinadas, compreendendo mudanças dietéticas, o uso de probióticos, estimulação elétrica percutânea do campo nervoso e abordagens cognitivas, como a terapia cognitivo-comportamental e a hipnoterapia.9

As estratégias farmacológicas disponíveis são limitadas em pacientes pediátricos. Com o objetivo de preencher essa lacuna, a fundação de Roma, em consenso com o comitê Roma IV, publicou o GI Genius Interactive Clinical Decision Toolkit, que consiste em um novo software interativo on-line sob demanda, que combina os algoritmos de decisão de diagnóstico e tratamento dos DDAF. Segundo esta nova abordagem, o uso de antiespasmódicos é recomendado como tratamento de primeira linha.9

Escopolamina

Trata-se de um fármaco antiespasmódico com ação anticolinérgica. Os anticolinérgicos previnem os efeitos do neurotransmissor acetilcolina (ACh), através do bloqueio de sua ligação aos receptores muscarínicos em locais neuroefetores, como, por exemplo, músculo cardíaco, músculo liso gastrointestinal e células da glândula exócrina, incluindo células epiteliais.12 É indicado no manejo das cólicas biliar e renal e nos espasmos agudos dos tratos gastrintestinal, geniturinário e vias biliares. Também pode ser administrado como auxiliar na prevenção de espasmos em procedimentos diagnósticos, como radiologia e endoscopia digestiva.13

Existe pouca evidência sobre o uso de escopolamina (também conhecida como butilbrometo de hioscina) para crianças com DDAF.14 Recentemente, Poonai e colaboradores (2020), observaram, em um ensaio clínico randomizado, que a escopolamina não foi superior ao acetaminofeno no contexto de manejo da dor abdominal em emergência pediátrica. Todavia, ambos foram associados à redução considerável da dor e podem ser considerados para crianças com dor abdominal em cólica inespecífica no atendimento em pronto-socorro.1Em ensaio clínico randomizado e controlado de centro único, Paudel, Basnet e Shreshtha descreveram que tanto a hioscina quanto a drotaverina foram igualmente eficazes no alívio da dor abdominal aguda inespecífica em crianças.15

É importante destacar que o uso deve ser moderado, em curto prazo, devido aos efeitos colaterais anticolinérgicos associados e à escassez de dados sobre eficácia clínica na faixa etária pediátrica.14 Os efeitos anticolinérgicos periféricos incluem boca seca, constipação, olhos secos, retenção urinária, taquicardia e visão turva (midríase). No SNC, os efeitos compreendem agitação, alucinações, comprometimento cognitivo e delirium. Por fim, os efeitos consequentes englobam cáries, obstrução gastrointestinal ou quedas.16

Caso clínico

  • Identificação: B. S. S., 8 anos, sexo feminino.
  • História da doença atual: Criança trazida ao consultório de pediatria pela mãe devido à queixa de dor abdominal recorrente iniciada há cerca de quatro meses. A dor é periumbilical, não se irradia e surge, em geral, no período em que a menina está na escola, principalmente antes de alguma prova ou apresentação em grupo. Os episódios de dor costumam durar entre 30 e 60 minutos e a criança frequentemente interrompe suas atividades devido às queixas álgicas. De acordo com a mãe, não há relação da dor com a alimentação nem com a frequência de evacuações. A criança refere uma pontuação de 10 na escala de faces de Wong-Baker quando a dor está presente.
  • História patológica pregressa: Criança previamente hígida. Não faz uso de medicamentos. Nega cirurgias e internações. Nega alergias.
  • Ao exame: Paciente cooperativa, brincando, com crescimento pondero-estatural de acordo com o esperado para a idade. Abdome plano, flácido, peristalse presente em quatro quadrantes, sem massas, sem visceromegalias, indolor.
  • Conduta: Foram solicitados hemograma completo, sumário de urina e parasitológico de fezes e a mãe foi orientada a administrar escopolamina 20 gotas, 8/8 horas, por cinco dias e como sintomático em caso de dor. Medidas não farmacológicas, como atividades ao ar livre, brincadeiras com os amiguinhos e uma dieta saudável foram também prescritas.
  • Evolução: Após um mês, a criança foi trazida novamente ao consultório de pediatria pela mãe para reavaliação. Os exames solicitados foram normais. Considerando os critérios de Roma IV, foi feito o diagnóstico de DDAF. A criança apresentou melhora significativa da frequência e da intensidade das dores, diminuindo para 0 na escala de Wong-Baker. Dessa forma, a criança também pôde executar suas atividades diárias com maior qualidade de vida. Não foram observados efeitos colaterais com o uso do medicamento.
  • Conclusão: O uso de escopolamina combinado a medidas não farmacológicas mostrou-se eficaz e seguro no manejo da dor abdominal de B.S.S. A criança evoluiu com alívio da dor e melhora da qualidade de vida por meio de uma abordagem individualizada.

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Referências bibliográficas

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