Logotipo Afya
Anúncio
Pediatria14 agosto 2024

Estudo holandês avalia dor em adolescentes submetidos a cirurgia de escoliose 

A dor pós-cirúrgica crônica em crianças e adolescentes é definida como a dor relacionada a um procedimento cirúrgico que se prolonga por mais de três meses após a cirurgia

A dor pós-cirúrgica crônica (DPCC) é uma condição que tem sido cada vez mais reconhecida, tendo sido incluída na Classificação Internacional de Doenças, 11ª revisão (CID-11). Cirurgias ortopédicas extensas, como a fusão espinhal, estão associadas a um risco elevado de DPCC, com estudos mostrando uma prevalência de 10 a 16% de dor intensa, mesmo cinco anos após a cirurgia. Fatores de risco para DPCC em pacientes pediátricos com escoliose consistem em dor pré-operatória, a intensidade da dor aguda pós-operatória (PO) e o sofrimento psicológico, incluindo catastrofização parental, ansiedade e depressão.  

Caso clínico: Perda da consciência pós bloqueio espinhal

Cerca de 50% dos adolescentes submetidos à cirurgia de correção de escoliose continuam a experimentar dor significativa um ano após o procedimento. Em resposta a essa prevalência, pesquisadores holandeses investigaram a evolução da dor no período pré-operatório e o valor potencial do Teste Sensorial Quantitativo Térmico (Thermal Quantitative Sensory Testing – T-QST) realizado antes da cirurgia como um preditor para dor crônica PO após a correção cirúrgica da escoliose. O artigo foi publicado no Frontiers in Pediatrics 

Estudo holandês avalia dor em adolescentes submetidos a cirurgia de escoliose 

Imagem de kjpargeter/freepik

Metodologia do estudo sobre dor pós-cirúrgica

Foi realizado um estudo de coorte prospectivo no Erasmus MC Sophia Children’s Hospital, em Rotterdam, Holanda. Os dados foram coletados de outubro de 2016 a janeiro de 2019. O objetivo era determinar a prevalência de DPCC em adolescentes um ano após cirurgia de escoliose, analisando o curso da dor PO durante o período de um ano (necessidade de medicamento de resgate e a relação entre T-QST pré-operatório, dor aguda e DCPP). Para a avaliação de dor, foi usada a escala numérica de autorrelato (Numeric Rating Scale [NRS] ≥ 4). 

  • Critérios de inclusão: 
    • Idade entre 11 e 18 anos; 
    • Cirurgia de escoliose planejada; 
    • Termo de consentimento informado (TCI) assinado pelos sujeitos e/ou pais/cuidadores. 
  • Critérios de exclusão: 
    • Contraindicação para analgesia epidural; 
    • Cirurgia de escoliose combinada com outros procedimentos cirúrgicos ortopédicos; 
    • Pacientes que não receberam a anestesia padronizada ou a analgesia PO protocolada. 

Protocolo do estudo

Pré-operatório 

  • Obtenção da assinatura do TCI; 
  • Entrevista telefônica com os pais para avaliar o nível cognitivo do participante; 
  • Obtenção do histórico de dor da criança em visita pré-operatória; 
  • Realização do T-QST; 
  • Medição pré-operatória da gravidade da deformação (ângulo de Cobbs) de forma independente por 2 ortopedistas. 

Perioperatório 

  • Indução: Propofol IV 3–4 mg/kg ou máscara com sevoflurano em mistura de O2-ar com colocação de acesso IV; 
  • Sufentanil IV 0,3 mcg/kg e rocurônio 0,6 mg/kg seguidos de intubação traqueal e ventilação; 
  • Manutenção da anestesia:  Propofol IV 6–10 mg/kg/h com sufentanil IV 0,2–0,4 mcg/kg/h e remifentanil IV 0,1–0,5 mcg/kg/min;  
  • Sinais vitais indicando dor (avaliação do anestesiologista): clonidina IV 1–2 mcg/kg; 
  • Monitoramento: ECG, saturação de O2, PA, CO2 expirado, PVC, monitoramento da profundidade da anestesia por EEG e potenciais evocados somatossensoriais; 
  • Colocação de dois CP sob visão direta (um cranial e outro caudal à ferida);  
    • Dose de ataque de ropivacaína 0,1 mL/kg em cada cateter, seguida por uma infusão contínua de 0,1 mL/kg de ropivacaína 2 mg/mL com sufentanil 0,5 mcg/mL (solução padrão). 

Pós-operatório 

  • Medicamentos: 
    • Paracetamol VO 90 mg/kg/dia 6/6h (reduzido para 60/mg/kg/dia no D4 PO) com diclofenaco VO 3 mg/kg/dia 8/8h; 
    • Resgate: bolus de 0,1 mL/kg da mistura de ropivacaína/sufentanil em cada CP. Se necessário, era feita uma dose de 1 mcg/kg de clonidina em cada CP; 
    • Problemas com os cateteres: bomba de PCA IV de morfina 15 mcg/kg/h com bolus de 15 mcg/kg e tempo de bloqueio de 10 min com escetamina 100 mcg/kg/h IV ou clonidina 0,1 mcg/kg/h como aditivos opcionais. 
    • Dor muscular intensa: diazepam VO 5 mg 3 vezes ao dia; 
    • D4 PO: 10 mg de oxicodona VO de liberação lenta 2 vezes ao dia com descontinuação do medicamento por CP ou IV. Este regime foi continuado por duas semanas no PO, junto com paracetamol/diclofenaco. Resgate: Oxicodona VO de liberação instantânea 5 mg (máximo 4 vezes/dia). Pacientes que não conseguiam tomar comprimidos: adesivo de buprenorfina 5 mcg/h com morfina VO 0,3 mg/kg até 6 vezes ao dia (resgate por 2 semanas); 
  • Primeiros 7 dias: NRS pelo menos 3 vezes ao dia com registro de todos os analgésicos; 
  • 7 e 14 dias após a alta: os participantes foram chamados para informar sobre o uso de medicação de resgate. 
  • Visitas de acompanhamento: em 6 semanas, 3 meses, 6 meses e 12 meses, combinadas com as visitas regulares à clínica ambulatorial ortopédica. As pontuações de dor foram atribuídas e a medição do T-QST foi realizada; 
  • Medição PO da gravidade da deformação (ângulo de Cobbs) de forma independente por 2 ortopedistas; 

Legenda: CP – cateter peridural; ECG – eletrocardiograma; EEG – eletroencefalograma; IV – intravenoso; PA – pressão arterial; PCA – patient controlled analgesia (analgesia controlada pelo paciente);  PVC – pressão venosa central; TCI – termo de consentimento informado; VO – via oral. 

Resultados 

Um total de 39 pacientes completaram o estudo, sendo 26 do sexo feminino. A idade média dos adolescentes foi 13,9 anos. Destes 39, 28 (72%) tinham escoliose idiopática; os outros 11 foram diagnosticados com um distúrbio congênito ou musculoesquelético. Além disso, 7 foram classificados com comprometimento cognitivo leve. Os pesquisadores descreveram que todos os pacientes incluídos com deficiência cognitiva leve foram capazes de fornecer as informações e responder às perguntas.  

Um ano após a cirurgia: 

  • ​10 (26%) pacientes relataram dor (NRS ≥ 4) ao se movimentar​;
  • 2 (5%) pacientes relataram dor (NRS ≥ 4) ao repousar; 
  • 4 (10,3%) apresentaram dor neuropática. 

Os limiares de dor ao calor e ao frio pré-operatórios foram correlacionados com o número de relatos de dor moderada ou intensa (NRS ≥ 4) na primeira semana após a cirurgia (r.392; p = 0,016 e r -.426; p = 0,009, respectivamente). 

Conclusão: dor em adolescentes submetidos a cirurgia de escoliose  

O estudo mostrou que, apesar da medicação completa para dor perioperatória, 26% dos adolescentes apresentaram DPCC um ano após a cirurgia de escoliose (inclusive quatro pacientes tiveram características de dor neuropática). Além disso, os pesquisadores encontraram algumas evidências de uma correlação entre os limiares de dor pré-operatória ao calor/frio e a dor aguda PO, assim como a dor crônica. No entanto, não se sabe o porquê da correlação inversa entre o limiar de dor pré-operatória ao frio e o desenvolvimento de dor crônica após a cirurgia de escoliose. De Leeuw e colaboradores acreditam que os dados desta análise exploratória exibem potencial para a avaliação com o T-QST com o intuito de se aprimorar o entendimento da dor crônica nesta população, o que permitirá melhor prevenção desta condição no PO em curto e em longo prazo. 

Leia também: Recomendações da AAP para o uso de exames radiológicos avançados na emergência 

Comentário 

Estudo bem detalhado, com um tema bastante atual em pediatria, porém ainda pouco explorado. Uma questão interessante que destaco aqui é a avaliação de dor feita no período perioperatório utilizando os sinais vitais, com consequente administração de analgésicos. Sabemos hoje que, conforme as diretrizes mais atualizadas sobre dor aguda em crianças e também em adultos, os sinais vitais não devem ser usados isoladamente na avaliação de dor. Dessa forma, é relevante excluir outras causas para alteração de sinais vitais antes de atribuir esta condição à dor.  No entanto, pelo fato de o paciente estar curarizado, os sinais vitais auxiliam na tomada de decisões quanto à analgesia, já que os bloqueadores neuromusculares impossibilitam a avaliação de dor usando medidas comportamentais. Uma forma de avaliação bastante precisa é através do índice biespectral (BIS) em pacientes bloqueados, infelizmente não acessível em muitos locais do Brasil. 

Autoria

Foto de Roberta Esteves Vieira de Castro

Roberta Esteves Vieira de Castro

Graduada em Medicina pela Faculdade de Medicina de Valença ⦁ Residência médica em Pediatria pelo Hospital Federal Cardoso Fontes ⦁ Residência médica em Medicina Intensiva Pediátrica pelo Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Mestra em Saúde Materno-Infantil (UFF) ⦁ Doutora em Medicina (UERJ) ⦁ Aperfeiçoamento em neurointensivismo (IDOR) ⦁ Médica da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) da UERJ ⦁ Professora adjunta de pediatria do curso de Medicina da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques ⦁ Membro da Rede Brasileira de Pesquisa em Pediatria do IDOR no Rio de Janeiro ⦁ Acompanhou as UTI Pediátrica e Cardíaca do Hospital for Sick Children (Sick Kids) em Toronto, Canadá, supervisionada pelo Dr. Peter Cox ⦁ Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) ⦁ Membro do comitê de sedação, analgesia e delirium da AMIB e da Sociedade Latino-Americana de Cuidados Intensivos Pediátricos (SLACIP) ⦁ Membro da diretoria da American Delirium Society (ADS) ⦁ Coordenadora e cofundadora do Latin American Delirium Special Interest Group (LADIG) ⦁ Membro de apoio da Society for Pediatric Sedation (SPS) ⦁ Consultora de sono infantil e de amamentação ⦁ Instagram: @draroberta_pediatra

Como você avalia este conteúdo?

Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.

Compartilhar artigo

Referências bibliográficas

Newsletter

Aproveite o benefício de manter-se atualizado sem esforço.

Anúncio

Leia também em Pediatria