A dor pós-cirúrgica crônica (DPCC) é uma condição que tem sido cada vez mais reconhecida, tendo sido incluída na Classificação Internacional de Doenças, 11ª revisão (CID-11). Cirurgias ortopédicas extensas, como a fusão espinhal, estão associadas a um risco elevado de DPCC, com estudos mostrando uma prevalência de 10 a 16% de dor intensa, mesmo cinco anos após a cirurgia. Fatores de risco para DPCC em pacientes pediátricos com escoliose consistem em dor pré-operatória, a intensidade da dor aguda pós-operatória (PO) e o sofrimento psicológico, incluindo catastrofização parental, ansiedade e depressão.
Caso clínico: Perda da consciência pós bloqueio espinhal
Cerca de 50% dos adolescentes submetidos à cirurgia de correção de escoliose continuam a experimentar dor significativa um ano após o procedimento. Em resposta a essa prevalência, pesquisadores holandeses investigaram a evolução da dor no período pré-operatório e o valor potencial do Teste Sensorial Quantitativo Térmico (Thermal Quantitative Sensory Testing – T-QST) realizado antes da cirurgia como um preditor para dor crônica PO após a correção cirúrgica da escoliose. O artigo foi publicado no Frontiers in Pediatrics.
Metodologia do estudo sobre dor pós-cirúrgica
Foi realizado um estudo de coorte prospectivo no Erasmus MC Sophia Children’s Hospital, em Rotterdam, Holanda. Os dados foram coletados de outubro de 2016 a janeiro de 2019. O objetivo era determinar a prevalência de DPCC em adolescentes um ano após cirurgia de escoliose, analisando o curso da dor PO durante o período de um ano (necessidade de medicamento de resgate e a relação entre T-QST pré-operatório, dor aguda e DCPP). Para a avaliação de dor, foi usada a escala numérica de autorrelato (Numeric Rating Scale [NRS] ≥ 4).
- Critérios de inclusão:
- Idade entre 11 e 18 anos;
- Cirurgia de escoliose planejada;
- Termo de consentimento informado (TCI) assinado pelos sujeitos e/ou pais/cuidadores.
- Critérios de exclusão:
- Contraindicação para analgesia epidural;
- Cirurgia de escoliose combinada com outros procedimentos cirúrgicos ortopédicos;
- Pacientes que não receberam a anestesia padronizada ou a analgesia PO protocolada.
Protocolo do estudo
Pré-operatório
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Perioperatório
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Pós-operatório
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Legenda: CP – cateter peridural; ECG – eletrocardiograma; EEG – eletroencefalograma; IV – intravenoso; PA – pressão arterial; PCA – patient controlled analgesia (analgesia controlada pelo paciente); PVC – pressão venosa central; TCI – termo de consentimento informado; VO – via oral.
Resultados
Um total de 39 pacientes completaram o estudo, sendo 26 do sexo feminino. A idade média dos adolescentes foi 13,9 anos. Destes 39, 28 (72%) tinham escoliose idiopática; os outros 11 foram diagnosticados com um distúrbio congênito ou musculoesquelético. Além disso, 7 foram classificados com comprometimento cognitivo leve. Os pesquisadores descreveram que todos os pacientes incluídos com deficiência cognitiva leve foram capazes de fornecer as informações e responder às perguntas.
Um ano após a cirurgia:
- 10 (26%) pacientes relataram dor (NRS ≥ 4) ao se movimentar;
- 2 (5%) pacientes relataram dor (NRS ≥ 4) ao repousar;
- 4 (10,3%) apresentaram dor neuropática.
Os limiares de dor ao calor e ao frio pré-operatórios foram correlacionados com o número de relatos de dor moderada ou intensa (NRS ≥ 4) na primeira semana após a cirurgia (r.392; p = 0,016 e r -.426; p = 0,009, respectivamente).
Conclusão: dor em adolescentes submetidos a cirurgia de escoliose
O estudo mostrou que, apesar da medicação completa para dor perioperatória, 26% dos adolescentes apresentaram DPCC um ano após a cirurgia de escoliose (inclusive quatro pacientes tiveram características de dor neuropática). Além disso, os pesquisadores encontraram algumas evidências de uma correlação entre os limiares de dor pré-operatória ao calor/frio e a dor aguda PO, assim como a dor crônica. No entanto, não se sabe o porquê da correlação inversa entre o limiar de dor pré-operatória ao frio e o desenvolvimento de dor crônica após a cirurgia de escoliose. De Leeuw e colaboradores acreditam que os dados desta análise exploratória exibem potencial para a avaliação com o T-QST com o intuito de se aprimorar o entendimento da dor crônica nesta população, o que permitirá melhor prevenção desta condição no PO em curto e em longo prazo.
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Comentário
Estudo bem detalhado, com um tema bastante atual em pediatria, porém ainda pouco explorado. Uma questão interessante que destaco aqui é a avaliação de dor feita no período perioperatório utilizando os sinais vitais, com consequente administração de analgésicos. Sabemos hoje que, conforme as diretrizes mais atualizadas sobre dor aguda em crianças e também em adultos, os sinais vitais não devem ser usados isoladamente na avaliação de dor. Dessa forma, é relevante excluir outras causas para alteração de sinais vitais antes de atribuir esta condição à dor. No entanto, pelo fato de o paciente estar curarizado, os sinais vitais auxiliam na tomada de decisões quanto à analgesia, já que os bloqueadores neuromusculares impossibilitam a avaliação de dor usando medidas comportamentais. Uma forma de avaliação bastante precisa é através do índice biespectral (BIS) em pacientes bloqueados, infelizmente não acessível em muitos locais do Brasil.
Autoria

Roberta Esteves Vieira de Castro
Graduada em Medicina pela Faculdade de Medicina de Valença ⦁ Residência médica em Pediatria pelo Hospital Federal Cardoso Fontes ⦁ Residência médica em Medicina Intensiva Pediátrica pelo Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Mestra em Saúde Materno-Infantil (UFF) ⦁ Doutora em Medicina (UERJ) ⦁ Aperfeiçoamento em neurointensivismo (IDOR) ⦁ Médica da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) da UERJ ⦁ Professora adjunta de pediatria do curso de Medicina da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques ⦁ Membro da Rede Brasileira de Pesquisa em Pediatria do IDOR no Rio de Janeiro ⦁ Acompanhou as UTI Pediátrica e Cardíaca do Hospital for Sick Children (Sick Kids) em Toronto, Canadá, supervisionada pelo Dr. Peter Cox ⦁ Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) ⦁ Membro do comitê de sedação, analgesia e delirium da AMIB e da Sociedade Latino-Americana de Cuidados Intensivos Pediátricos (SLACIP) ⦁ Membro da diretoria da American Delirium Society (ADS) ⦁ Coordenadora e cofundadora do Latin American Delirium Special Interest Group (LADIG) ⦁ Membro de apoio da Society for Pediatric Sedation (SPS) ⦁ Consultora de sono infantil e de amamentação ⦁ Instagram: @draroberta_pediatra
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