A constipação funcional (CF) é um problema que acomete cerca de 10-15% da população infantil em todo o mundo, trazendo impacto social, físico e emocional tanto para as crianças como para seus cuidadores.1,2 Globalmente, aproximadamente 25% das consultas de gastroenterologia infantil e 3% das consultas pediátricas acontecem devido a queixa de constipação.2
O tratamento não farmacológico consiste na educação sobre o tema, desmistificando a CF, em orientações dietéticas, principalmente no que tange consumo de fibras e líquidos, e estratégias de recompensa em crianças em treinamento para desfralde.1
Definição
Segundo a atualização mais recente dos critérios de Roma (Roma IV), o diagnóstico da CF deve ser firmado mediante a presença de pelo menos duas características por um período de no mínimo 1 mês (Tabela 1).1,2
Tabela 1. Critérios de Roma IV para diagnóstico de constipação funcional em crianças.
Critérios de Roma IV | |
< 4 anos | Duas ou menos evacuações por semana |
Comportamentos que indiquem retenção excessiva de fezes | |
História de defecação dolorosa ou endurecida | |
Relato de fezes muito volumosas | |
Presença de grande massa fecal no reto | |
≥ 4 anos | Duas ou menos evacuações por semana |
Comportamentos que indiquem retenção excessiva de fezes | |
História de defecação dolorosa ou endurecida | |
Relato de fezes muito volumosas | |
Presença de grande massa fecal no reto | |
Incontinência fecal semanalmente após aquisição do controle esfincteriano | |
História de fezes volumosas com entupimento do vaso sanitário |
Fisiopatologia
Embora existam diversas causas orgânicas para constipação, incluindo distúrbios endócrinos, metabólicos e anatômicos, apenas 5-10% das crianças com constipação estão relacionados a estas condições. A grande maioria das crianças não apresenta quaisquer alterações, recebendo o diagnóstico de CF.1,2
Em crianças pequenas, o mais comum é que um episódio de fezes endurecidas e defecação dolorosa sejam seguidos de comportamento evitativo e adiamento da evacuação, o que reforça o ciclo, já que períodos prolongados dentro do intestino propiciam uma maior absorção de água que tende a deixar as fezes mais endurecidas, levando à defecação dolorosa.1,. A longo prazo, pode haver alterações de complacência retal que favorecem maior retenção fecal e perpetuam ainda mais o ciclo, por vezes com impactação fecal e incontinência.1
Fatores psicossociais como estresse e ansiedade podem contribuir de forma importante na CF, assim como a genética, estilo de vida e o microbioma intestinal.1,2
Tratamento
A educação sobre a CF é o primeiro passo para garantir tratamento adequado, já que apenas um terço dos pacientes têm boa aderência ao plano terapêutico proposto.1,2 É imprescindível que fique claro para a família que o comportamento evitativo da criança com relação à defecação é parte crucial na fisiopatologia da condição.2
Os cuidadores também devem compreender que não há uma resolução rápida e definitiva para a CF, sendo necessário que o manejo ocorra no dia a dia, de forma contínua.
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Desimpactação fecal
No início do tratamento, pode ser necessário o uso de enema retal, tratamento medicamentoso oral com polietilenoglicol (PEG) ou ambos para desimpactação fecal.2 Nesses casos, o tratamento de primeira linha segundo a European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN) e North American Society for Pediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (NASPGHAN) consiste em fazer uso de 1-1,5 g/kg/dia de PEG por 3 a 6 dias.1,2
Embora o uso de enema seja capaz de garantir a resolução mais rápida, tende a ser um método mais invasivo e traumático, sendo mais utilizado em crianças com dor abdominal importante ou grande massa fecal identificada ao exame físico.2
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Tratamento de manutenção
O tratamento de manutenção deve ser iniciado assim que houver a desimpactação, podendo serem usados laxantes osmóticos, como o PEG e a lactulose.1,2 Laxantes estimulantes devem ser usados principalmente quando a terapia osmótica não é suficiente para controle da constipação, sendo os mais conhecidos a senna e o bisacordil.1,2
Senna é a fruta ou a planta derivada das espécies Senna alexandrina ou Cassia augustifolia conhecida como um laxante natural com mínima absorção sistêmica que pode ser usado a partir dos 2 anos de idade com segurança e eficácia comprovadas.2,3 Outros compostos botânicos já foram estudados, porém com evidências de eficácia insuficientes e com potenciais efeitos adversos importantes.3
Não há estudos randomizados controlados que estudaram o tempo ideal para terapia de manutenção.1 A ESPGHAN e a NASPGHAN recomendam reavaliação sobre o tratamento após duas semanas, para que ajustes sejam feitos quando necessários. O tratamento deve durar pelo menos 2 meses.1
A partir do momento que a criança atinja melhora do quadro, definida como frequência evacuatória de pelo menos 3 vezes na semana e sem preencher os critérios de Roma IV para CF por pelo menos um mês, inicia-se a redução gradual das doses, sempre observando sinais de recorrência dos sintomas.1
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Tratamento não farmacológico
Durante o tratamento, é importante assegurar adequado consumo de fibras e de líquidos, o que na maioria das vezes pode ser feito por meio de ajustes dietéticos.1,2 Deve-se interferir na mudança de hábitos alimentares da criança e da família orientando sobre a importância do consumo diário de legumes, verduras e frutas. Um dieta pobre em fibra é um fator de risco para CF em crianças, sendo recomendado um consumo calculado a partir da idade em anos somado ao valor de 5-10 g/dia em crianças maiores de 2 anos.2 Pode-se, além disso, utilizar suplementos alimentares de fibras, para ajudar a manter o volume do bolo fecal.4
Um adequado manejo do desfralde também minimiza fatores que podem aumentar o risco de constipação, como ansiedade relacionada a evacuação.1,2 Embora alguns métodos de desfralde sejam atualmente aceitos, a American Academy of Pediatrics recomenda o método centrado na criança, no qual o desfralde geralmente é iniciado entre 18 e 24 meses de vida.2
Os cuidadores devem ser compreensivos com o processo de desfralde, podendo motivar a criança através de estratégias de reforço positivo, como o uso de adesivos para recompensar um bom comportamento.2
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Terapias Promissoras
Mediante a compreensão de que a microbiota intestinal pode ter papel relevante na CF, probióticos, prebióticos e simbióticos são considerados opções terapêuticas promissoras.2 No entanto, ainda não estão claros os benefícios ou quais seriam as melhores estratégias (por exemplo, melhor cepa e dose), sendo necessários mais estudos sobre o assunto.1,2
Conclusão
A CF é uma condição comum em crianças que pode trazer impacto importante tanto para as crianças quanto para seus cuidadores.1 O tratamento deve ser contínuo e a longo prazo, sendo importante garantir um adequado consumo de fibras e líquidos.1-3
Em alguns casos pode ser necessário tratamento medicamentoso tanto para manejo de impactação fecal quanto para manutenção, sendo o PEG o medicamento de escolha.1,2 Para pacientes com constipação de mais difícil controle, pode ser necessário associação com laxantes estimulantes, sendo a senna uma opção natural e segura.1-3
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