Os agonistas de GLP-1 (aGLP-1) revolucionaram o tratamento do diabetes tipo 2 e da obesidade devido aos seus efeitos benéficos no controle glicêmico, do peso e proteção cardiovascular. Recentemente foi demonstrado também o possível papel da semaglutida em redução do risco de progressão de doença renal e na insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada, além de impacto positivo no manejo da doença hepática esteatótica metabólica (DHEM).
No entanto, desde os primeiros estudos pré-clínicos, levantou-se a hipótese de que essas drogas poderiam aumentar o risco de câncer de tireoide, particularmente carcinoma medular da tireoide (CMT), um subtipo raro, mas agressivo, relacionado à ativação das células C tireoidianas. Embora evidências em roedores tenham demonstrado proliferação celular tireoidiana após exposição a aGLP-1, estudos em humanos não demonstraram um aumento consistente no risco de neoplasias tireoidianas. Apesar disso, agências regulatórias como o FDA e a EMA emitiram advertências para o uso desses medicamentos em indivíduos com histórico pessoal ou familiar de CMT ou neoplasia endócrina múltipla tipo 2 (NEM-2), sendo ainda contraindicados para essa população. Ainda, algumas notificações motivaram estudos observacionais inconsistentes quanto ao risco de câncer diferenciado de tireoide.
Diante da crescente prescrição dessa classe para o manejo de doenças cardiometabólicas, torna-se essencial esclarecer se há uma real associação entre os agonistas de GLP-1 e câncer de tireoide. Para responder a essa questão, foi elaborado um estudo que utilizou bases de dados populacionais para conduzir uma emulação de ensaio clínico randomizado (target trial emulation), um método que busca minimizar vieses inerentes a estudos observacionais ao estruturar as análises de forma a simular um ensaio clínico randomizado ideal. A avaliação da associação foi uma análise secundária pré-especificada do target trial. O estudo foi publicado recentemente no JAMA.
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O estudo
Dado que estudos randomizados de longa duração para avaliar riscos raros, como câncer de tireoide, são impraticáveis, os pesquisadores utilizaram a abordagem “target trial emulation” para criar um estudo observacional que simulasse as condições de um ensaio clínico randomizado (RCT). Essa metodologia permite comparar diferentes exposições terapêuticas de forma sistemática, minimizando viés de confusão e imortalidade. O presente estudo foi uma análise secundária pré especificada de um target trial previamente elaborado (Second line therapies for patients with type 2 diabetes and moderate cardiovascular disease risk study).
Como é elaborado um target trial?
Os pesquisadores primeiro definiram as características que um ensaio clínico ideal teria para avaliar o risco de câncer de tireoide associado aos agonistas de GLP-1, definindo, como num RCT, a população alvo, o comparador e o desenho do estudo:
– População-alvo: Pacientes com diabetes tipo 2, sem histórico de câncer de tireoide, iniciando tratamento com aGLP-1 ou outras classes de hipoglicemiantes.
– Comparação: Usuários de aGLP-1 versus usuários de outras classes terapêuticas (inibidores de SGLT2, inibidores da DPP-4 e sulfonilureias). A análise foi feita com comparações entre todas as classes vs. aGLP-1 e também aGLP-1 vs cada classe individualmente.
– Desenho do estudo: Análise baseada em grandes bases de dados de seguradoras de saúde dos Estados Unidos, com seguimento longitudinal para avaliar desfechos de câncer de tireoide.
– Desfecho deste estudo: Diagnóstico de câncer de tireoide, identificado por códigos CID e revisões médicas.
Os pesquisadores então aplicaram essas definições para selecionar os indivíduos nos bancos de dados populacionais. Foram analisados registros de planos comerciais, Medicare Advantage e Medicare fee-for-service entre 2014 e 2021. A coorte final incluiu 351.913 pacientes, distribuídos entre os seguintes grupos: 41.112 que iniciaram GLP-1RAs; 76.093 que iniciaram inibidores de DPP-4; 43.499 que iniciaram inibidores de SGLT2; 191.209 que iniciaram sulfonilureias.
A média de idade dos participantes foi 65,3 anos (DP ± 8,5), refletindo uma população predominantemente idosa, com uma proporção considerável de indivíduos acima dos 70 anos. Cerca de 49,3% eram mulheres, enquanto 50,7% eram homens, garantindo um equilíbrio na distribuição de gênero entre os grupos de tratamento. A maior parte dos pacientes apresentava múltiplas comorbidades metabólicas e cardiovasculares associadas ao diabetes tipo 2, sendo que 72% tinham hipertensão arterial sistêmica (HAS), 48% tinham dislipidemia, 32% tinham histórico de doença cardiovascular prévia (incluindo infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral), 15% tinham doença renal crônica (TFG <60 mL/min/1,73m²) e 25% faziam uso concomitante de insulina, refletindo um fenótipo de diabetes mais avançado.
A duração média do diabetes foi de 9,8 anos (DP ± 6,1), indicando que a maioria dos participantes possuía uma longa história da doença, o que poderia influenciar o risco basal de neoplasias devido a fatores inflamatórios e metabólicos crônicos.
Resultados
Não houve aumento de risco de câncer de tireoide no grupo semaglutida em comparação aos demais grupos (HR: 1,24; IC 95%: 0,88-1,76; p=0,23).. Ao todo, os pesquisadores identificaram 694 casos de câncer de tireoide:
- 69 casos (0,17%) no grupo aGLP-1;
- 172 casos (0,23%) no grupo iDPP-4;
- 72 casos (0,17%) no grupo iSGLT2,
- 381 casos (0,20%) no grupo sulfonilureias
No entanto, foi observado um aumento no risco de câncer de tireoide no primeiro ano após o início de aGLP-1, sobretudo quando pacientes que descontinuaram a terapia foram censurados (HR 2,07; IC 95%: 1,1-3,95). Vale destacar que este dado serve apenas para ponderação e elaboração de novas hipóteses, uma vez que se trata de uma análise censurada dentro de um desfecho secundário de um target trial. Outro dado interessante é que indivíduos que iniciaram aGLP-1 tiveram maior probabilidade de ser submetidos à realização de USG de tireoide, que pode implicar em um viés significativo.
Conclusão
Os achados indicam que não há evidência suficiente para associar o uso de agonistas de GLP-1 a um risco aumentado de câncer de tireoide. A principal força deste estudo reside no uso da metodologia de emulação de ensaio clínico, que minimiza vieses comuns em estudos observacionais, permitindo conclusões mais próximas às de um RCT.
No entanto, duas limitações são muito relevantes neste estudo: A falta de dados sobre subtipos de câncer de tireoide – Não foi possível distinguir entre carcinoma medular e papilífero; O tempo de seguimento foi relativamente curto – o câncer de tireoide pode levar anos para se desenvolver, e estudos futuros com seguimento prolongado são necessários.
Mensagem prática
Até o presente momento, não há evidências de qualidade que suportem a teoria de um aumento de risco de câncer de tireoide em pacientes em uso de aGLP-1. Considerando os benefícios metabólicos, cardiovasculares e renais conferidos pela classe, hoje não há dúvidas que a balança pende para suas virtudes. Contudo, a beleza da ciência reside na flexibilidade em aceitar novas evidências para reavaliar conceitos antes bem estabelecidos. Portanto, novos estudos devem focar em avaliações mais prolongadas e análises moleculares para esclarecer definitivamente a segurança dessa classe de medicamentos no contexto do câncer de tireoide.
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