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Neurologia13 março 2023

Conheça a síndrome do sotaque estrangeiro

Uma revisão teve o objetivo de descrever as características atreladas à síndrome do sotaque estrangeiro. Veja os detalhes.

Por Danielle Calil

A síndrome do sotaque estrangeiro é um transtorno de fala em que os ouvintes consideram que o indivíduo acometido apresente fala com sotaque diferente do regional ou com características estrangeiras ao comparar com o sotaque original. 

Há relatos que descrevem essa síndrome como resultado de um acidente vascular cerebral ou de lesão de outras naturezas que possam afetar áreas de conexões motoras de fala. Por outro lado, em revisão sistemática prévia, foi demonstrado uma etiologia psicogênica para essa mesma síndrome. 

A Journal of Neurology, Neurosurgery and Psychiatry publicou em 2019 uma revisão dessa síndrome com o objetivo de descrever as características atreladas à síndrome do sotaque estrangeiro, como também estimar a prevalência de causas psicogênicas em sua amostra.

Caso clínico: paciente com síndrome de locked-in [vídeo]

doenças boca

Métodos

Os critérios de inclusão do estudo foram participantes acima de 18 anos que considerassem apresentar a síndrome do sotaque estrangeiro. 

Foram submetidos a responder virtualmente questionários como PHQ-15 (Patient Health Questionnarie), HADS (Hospital Anxiety and Depression Scale), WSAS (Work and Social Adjustament Scale) e IPQ-R (Illness Perceptions Questionnaire-Revised). Além disso, foram convidados a submeter amostras de gravações de fala acerca do texto padrão Rainbow Passage e uma descrição espontânea da cena “Cookie Theft Picture”.  

Os autores da publicação reuniram os dados coletados e discutiram a causa provável da síndrome do sotaque estrangeiro, dividindo em: “causa provavelmente estrutural” (quando investigação complementar apresentou injúria neurológica que corresponde ao início dos sintomas), “causa provavelmente funcional” (quando investigação complementar não denotou injúria neurológica e outras características clínicas como inconsistência sugestionaram presença de causa funcional) e “causa possivelmente funcional” (quando algumas características sugeriam causa funcional porém apresentava incerteza sobre possível lesão estrutural). A avaliação do conteúdo audiovisual foi realizada por um dos autores e um fonoaudiólogo “cego” aos detalhes clínicos, de forma que essa análise também tenha sido caracterizada nessas três categorias já descritas anteriormente. 

Resultados 

A coleta de dados ocorreu entre novembro de 2016 a março de 2017, com 49 respostas: 24 providas do Reino Unido, 23 da América do Norte e duas da Austrália. 

A classificação consensual realizada pelos autores foi: 71% dos casos foram categorizados como causa “provavelmente funcional” (35 casos), 8% como “possivelmente estrutural” (quatro casos, sendo dois acidentes cerebrovasculares sem alteração de imagem, um de doença de Parkinson e um TCE leve) e, por fim, 20% como causa “provavelmente estrutural” (dez casos em que oito foram relacionados a AVC, um TCE e uma cefaleia incapacitante com paralisia de Bell). 

A instalação dos sintomas, em geral, foi abrupta e seguida por um evento significativo (na amostra, os eventos mais descritos foram migrânea, AVC ou cirurgia/dano físico em área de face, boca ou mandíbula). Na amostra de 49 pacientes, 43 possuíam neuroimagem, quatro continham exames de EEG e três apresentavam resultados de raquicentese. 

Diversos sotaques foram relatados sendo que 22 participantes indicaram que o sotaque em si havia sido alterado enquanto outros dez relataram que a descrição de sotaques alterados foi percebida por diferentes ouvintes. Dentre esses relatos, houve descrição de sotaques estrangeiros (como italiano, francês, alemão, polonês, indiano, asiático, entre outros), assim como a percepção de alteração de sotaque de sua língua nativa (como britânico, australiano, irlandês, canadense, entre outros). Um participante referiu também alteração de fala para uma “voz de criança” ou tendência em escolher fortes sotaques, enquanto outro participante descreveu uma espécie de parafasia em que trocava a primeira letra da primeira palavra como se fosse da segunda ao ser enunciada (ex: “cuarda-ghuva” em vez de guarda-chuva). 

Foram 14 participantes que alegaram que os sintomas possuem curso intermitente, porém 23 (47% da amostra) alegou períodos distintos de remissão em que o sotaque normal retornou após horas-dias. 

Na análise audiovisual, foi notado que 11 entre 13 casos gravados foram classificados nas categorias propostas, enquanto os dois casos remanescentes foram descritos como incertos. A partir dessa avaliação, foram notadas características que sugeriram causa provavelmente funcional da síndrome, como: 

  • Linguagem: Dificuldade na elaboração da estrutura gramatical simples, não sendo observado em sentenças complexas. Omissão inconsistente do final do verbo em gerúndios. Adição inapropriada de sonoridade de algumas palavras que não foi aplicado a todas as palavras presentes em frases.
  • Qualidade de voz: Variabilidade excessiva e inconsistente de graus de rouquidão.
  • Articulação: Incompatibilidade da pronúncia de vogais e consoantes, em que possui dificuldade para produção de vogais em som palatal, porém na produção de consoantes com som palatal não – o que sugere que inconsistência para atribuir a dificuldades neuromusculares para produção desse som.
  • Sotaque observado: Variabilidade bem-marcada (em que do sotaque original vá, abruptamente, para outro sotaque fortemente existente). Outro sinal é um sotaque com tom mais infantil.
  • Prosódia: Inconsistentes mudanças de entonação das palavras.
  • Fluência: Dificuldade na exteriorização de palavras, com qualidade forçada para iniciar a fala. 

Comentários 

Segundo os autores, esse estudo representa uma das maiores séries de casos de síndrome do sotaque estrangeiro, sendo que a maioria dessa amostra (em torno de 71%) apresentou associação com causa provavelmente funcional. 

Foram três comportamentos que sugeriram maior associação com etiologia funcional:

1) Diferença entre as dificuldades aparentes de fala com o exame clínico fonoaudiológico,

2) inconsistência de alterações de fala que não são bem estabelecidas em literatura e

3) presença de alterações de fala não encontradas em distúrbio motor de fala de origem neurológica (como prosódia infantil, intrusão de palavras estrangeiras em frases de língua de origem). 

Na experiência clínica dos autores, a síndrome do sotaque estrangeiro associada à injúria neurológica geralmente possui grau de recuperação em torno de semanas. Enquanto alterações acústicas de fala podem persistir, o período do som “estrangeiro” geralmente nesses casos é curto.

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Conclusão e mensagem prática 

O estudo apresentado sugere uma hipótese de que a síndrome do sotaque estrangeiro pode ser decorrente, geralmente, de etiologia funcional – visto que nessa amostra 71% dos casos foram associados a causas provavelmente funcionais. Vale ressaltar, contudo, que se trata de estudo observacional apresentando limitação para generalização na prática clínica. 

Em casos de etiologia neurológica estrutural, geralmente o sotaque “estrangeiro” possui curta duração apesar de algumas alterações acústicas de fala poderem persistir. 

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Referências bibliográficas

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