A encefalomielite disseminada aguda (ADEM) é um tema clássico na neurologia — conhecida há décadas como uma condição inflamatória, geralmente monophasia e com bom prognóstico.
Um estudo publicado no BMJ Neurology Open revisitou esse tema “antigo” e mostrou que a história pode ser mais complexa do que pensávamos. Mesmo após a recuperação clínica, muitos pacientes — especialmente crianças — podem apresentar déficits cognitivos persistentes e sintomas psiquiátricos que impactam a qualidade de vida.
Este artigo traz uma síntese moderna, confronta crenças antigas e fornece novas direções para a prática clínica.
O que o estudo analisou?
A revisão conduzida por Kazzi e colaboradores reuniu 15 estudos avaliando cognição e saúde mental em crianças e adultos com ADEM. Os autores analisaram:
- desempenho cognitivo em testes formais,
- sintomas de ansiedade e depressão,
- fatores associados a piores desfechos (idade, carga lesional, MOG-IgG, entre outros),
- diferenças entre ADEM pediátrico e ADEM em adultos.
Embora a ADEM seja tradicionalmente vista como uma doença autolimitada, com 60–90% dos pacientes apresentando recuperação neurológica completa, o artigo mostra que a recuperação cognitiva nem sempre acompanha a recuperação motora.
Principais achados cognitivos
A revisão destaca que déficits cognitivos podem persistir por anos, mesmo em pacientes considerados “recuperados” do ponto de vista neurológico.
Domínios mais afetados
- Atenção e velocidade de processamento — Os mais consistentemente prejudicados.
- Estudos relatam que até 43% das crianças apresentam déficit atencional.
- Casos severos podem evoluir com sintomas compatíveis com TDAH.
- Execução — Resultados mistos.
- Testes padronizados muitas vezes não identificam déficits significativos,
- mas pais e cuidadores frequentemente relatam dificuldades reais no cotidiano.
- Memória
- Déficits verbais e visuais foram encontrados em 20–47% dos pacientes.
- A memória pode estar comprometida secundariamente aos déficits de atenção.
- Linguagem e funções visuoespaciais
- Geralmente preservadas, com poucos relatos de déficits clínicos relevantes.
E nos adultos?
Os dados são mais escassos, mas preocupantes.
Os poucos casos publicados mostram déficits cognitivos marcantes e duradouros, com prejuízo funcional importante:
- dificuldades persistentes em atenção, memória e funções executivas,
- incapacidade de retorno ao trabalho em alguns casos,
- impacto significativo nas atividades de vida diária.

Saúde mental: sintomas são comuns e subestimados
O artigo demonstra que ansiedade e depressão são frequentes, especialmente em crianças, e podem persistir por anos.
- Em alguns estudos, até 40% das crianças apresentaram ansiedade clinicamente significativa.
- Jovens com menor idade de início parecem ser mais vulneráveis.
- Lesões maiores em T2 na ressonância se correlacionaram com mais sintomas psiquiátricos em alguns estudos.
O achado reforça que, embora a ADEM seja “benigna” do ponto de vista motor, as sequelas emocionais podem ser profundas.
Por que isso acontece?
A revisão discute alguns mecanismos possíveis:
- Lesões predominantes em substância branca frontal, essenciais para atenção, organização e regulação emocional.
- Processos inflamatórios difusos, que podem gerar desconexão funcional.
- Imaturidade neurodesenvolvimental — crianças pequenas parecem mais vulneráveis.
- Carga lesional maior, em especial na forma MOG-negativa.
Fatores que influenciam o prognóstico
- Idade
- < 5 anos: maior risco de déficits cognitivos e emocionais.
- Adultos: evolução mais grave em relação às crianças.
- Localização e volume das lesões
- Lesões profundas e frontais se associam a piores desfechos.
- Sorologia MOG-IgG
- MOG-positivo: melhor recuperação clínica e radiológica.
- MOG-negativo: maior risco de déficits cognitivos persistentes.
- Tempo de evolução
- Déficits podem persistir por anos; estudos relatam alterações até 6–7 anos de seguimento.
Implicações práticas para neurologistas
O estudo reforça a necessidade de mudar a abordagem tradicional da ADEM:
- Avaliar cognição de forma rotineira: Mesmo que o exame neurológico seja normal.
- Acompanhar saúde mental: Muitos sintomas só aparecem no retorno à escola ou trabalho.
- Usar equipe multidisciplinar: Neuropsicologia, psiquiatria, fonoaudiologia, TO e psicopedagogia.
- Considerar suporte escolar e reabilitação prolongada: Especialmente para crianças pequenas.
- Rastrear sintomas de Déficit de atenção: Alguns casos respondem bem a psicoestimulantes ou guanfacina (como descrito em um dos relatos de caso).
Conclusão
Embora considerada uma doença “benigna” e autolimitada, a ADEM pode deixar marcas invisíveis, especialmente cognitivas e emocionais.
Esta revisão recente mostra que:
- Atenção e velocidade de processamento são os domínios mais vulneráveis,
- Sintomas psiquiátricos são frequentes e relevantes,
- Adultos parecem ter pior recuperação funcional,
- Testes neuropsicológicos são essenciais para identificar déficits que passam despercebidos no exame neurológico tradicional.
Em resumo: a ADEM é antiga, mas as informações são novas — e mudam a forma como devemos acompanhar esses pacientes.
Autoria

Thiago Nascimento
Formado em Medicina pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF) em 2015. Residência Médica em Neurologia no Hospital Geral Roberto Santos (HGRS) Salvador - Bahia (2016-2019). Membro titular da Academia Brasileira de Neurologia (ABN). Mestrando em Ciências da Saúde pela UFBA (PPGCs - UFBA). Preceptor da Residência de Neurologia do HU- UFS - (Ebserh - Aracaju- SE). Médico Neurologista - Membro do Ambulatório de Neuroimunologia do HU- UFS - (Ebserh - Aracaju- SE). Professor na Afya Educação Médica.
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