De 20% a 35% dos indivíduos com epilepsia podem apresentar epilepsia fármaco-resistente, isto é, persistência de crises epilépticas a despeito do uso de pelo menos 2 medicamentos anticrise (MACs) que, por sua vez estão aplicados adequadamente para o tipo de crise epiléptica do indivíduo, com doses otimizadas e bem toleradas pelo indivíduo. As epilepsias fármaco-resistente estão associadas à alta morbidade, perda de funcionalidade, associação com transtornos de humor (ansiedade e depressão) e piora de qualidade de vida.
Há terapias adjuvantes que podem ser consideradas para epilepsia fármaco-resistentes, como cirurgia (na qual uma minoria dessa população apresenta elegibilidade) e neuroestimulação (uma alternativa interessante ainda que não resulte em controle pleno de crises). Alguns estudos exploratórios sugeriram que cães treinados para reconhecer crises epilépticas e promover auxílio em sua ocorrência (conhecidos pelo termo seizure dog) potencialmente podem auxiliar na redução de frequência de crises epilépticas e melhora na qualidade de vida.
Seizure dogs são treinados para identificar atividade epileptiforme no seu tutor a partir de movimentos corporais, sons ou sinais fisiológicos. A resposta do seizure dog quanto à crise epiléptica varia de acordo com as necessidades do seu tutor portador de epilepsia, podendo contemplar: ativação de sistema de alarme, buscar medicamentos ou telefone, bloquear o movimento ou alterar a posição do corpo desse tutor.
Esse ano a Neurology publica o estudo EPISODE que avalia, como desfecho primário, o desempenho do seizure dog como ferramenta para redução de crises epilépticas de pacientes portadores de epilepsia farmaco-resistente e, como desfecho secundário, melhora na qualidade de vida.
Métodos
É um estudo ocorrido em países baixos, ocorrendo entre junho de 2019 até maio de 2022.
Trata-se de um tipo de ensaio clínico randomizado na qual a população estudada é gradualmente introduzida para o grupo intervenção. A randomização determina o ponto temporal em que esses participantes receberam a intervenção (ao invés de definir se irão ou não receber esse tratamento, como ocorre em ensaios clíncios tradicionais). Logo, os participantes foram observados pela primeira vez durante um período de referência, recebendo posteriormente e de forma sequencial, um seizure dog no horário designado e foram passados à condição de intervenção em uma sequência aleatória.
Foram elegíveis pacientes com preenchimento de critérios para epilepsia fármaco-resistente, com características de eventos epilépticos associados a elevado risco de injúrias, que possuíssem habilidade de cuidado com um seizure dog. Além de uma equipe de neurologistas avaliar a elegibilidade para condição clínica desse participante, o provedor do seizure dog avaliou circunstâncias pessoais do candidato para definir a viabilidade desse candidato em manter esse cão (por exemplo, condições de habitação e rede de apoio para ajudar com cuidado e treinamento de cães).
Os seizure dogs foram fornecidos através de uma trajetória canina pré-treinada ou uma trajetória de coaching de equipe. Na trajetória do cão pré-treinado, o participante fez parceria com um cachorro que havia terminado treinamento de socialização e obediência, após o qual o treinamento de tarefas específicas da epilepsia continuou na casa do participante lar. Na trajetória de coaching de equipes, os participantes foram instruídos no treinamento de um filhote em sua própria casa desde o início. Ambas as trajetórias fornecem um seizure dog segundo os padrões da Assistance Dogs International, o efeito dessas trajetórias foi assumido como idêntico.
Antes do início da coleta de dados, os participantes foram aleatoriamente atribuídos a um ponto no tempo em que a trajetória do seizure dog começaria. A randomização foi realizada separadamente para a trajetória do cão pré-treinado e a trajetória do treinamento da equipe, tendo em conta um acompanhamento mínimo de 3 meses sem cão de estudo e 3 meses com um cão certificado para crise epiléptica para cada participante.
Considerando um nível de significância de 5%, foi realizado cálculo amostral do estudo com duas amostras, uma com 20 e outra com 25 participantes — sendo que, em ambos os tamanhos, foi identificado mais de 80% de poder estatístico para identificar a redução de crises epilépticas.
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Resultados
Entre os 25 participantes com epilepsia fármaco-resistente coletados para o estudo, 20 participantes foram avaliados em ambas as circunstâncias (condição assistencial usual x condição com intervenção) para análise.
Os participantes, durante período de condição assistencial usual, apresentaram média de 115 (desvio padrão 164) crises epilépticas em período de 28 dias ao comparar com 73 (desvio padrão 131) crises ocorridas durante o período de intervenção. Portanto, a média de frequência de crises durante o seguimento do grupo intervenção foi 31,1% menor do que ao comparar com a frequência ocorrida durante o cuidado assistencial usual.
Durante esse período, os participantes realizavam preenchimento de escalas para mensurar qualidade de vida, como a escala EQ VAS e QOLIE-31-P. Durante período de cuidado assistencial usual, o escore médio de EQ-VAS e QOLIE-31-P foram, respectivamente, de 69,0 e 55,4; enquanto, durante a intervenção, esses escores médios foram de 73,9 e de 58,7, respectivamente.
Para cada dia consecutivo do período de 28 dias com a intervenção, o escore EQ-VAS aumentou em torno de 0,1% (1,001, IC 95% 1,001-1,002) e o escore QOLIE-31-P aumentou em torno de 0,2% (1,002, IC 95% 1,001-1,002), refletindo um aumento na qualidade de vida desses participantes.
Discussão
O estudo EPISODE avaliou a efetividade da presença do seizure dog como recurso para avaliar sua efetividade em reduzir crises epilépticas e melhorar a qualidade de vida em pacientes com epilepsia fármaco-resistente através do seu desenho de estudo randomizado.
Comparar esse estudo com outros já publicados na literatura é difícil em decorrência das diferenças entre desenhos desses estudos. Ainda assim, a magnitude do efeito da intervenção do seizure dog na redução das crises, evidente no estudo EPISODE, é significativo dado a incerteza do mecanismo de ação da presença do seizure dog na redução de crises. Uma potencial explicação para essa ocorrência, segundo os autores, seria a relação bidirecional fisiopatológica entre estresse e epilepsia.
O estudo apresenta limitações. Embora o cálculo amostral tenha considerado 20 e 25 participantes como suficiente para detectar o desfecho primário, o tamanho amostral do estudo foi pequeno para avaliar os desfechos secundários e limita também a possibilidade para realização de análise de subgrupo. Além disso, como o estudo não foi cego. Uma outra ponderação importante é que os desfechos do estudo foram baseados com preenchimento dos próprios participantes quanto ao diário de crises epilépticas e os questionários de qualidade de vida, de modo que possa ter ocorrido um viés de informação.
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