Aplicar os critérios de encefalite autoimune na prática clínica funciona?
Um estudo teve como objetivo principal avaliar a utilidade na prática clínica dos critérios diagnósticos de 2016 para encefalite autoimune.
A encefalite autoimune (EA) é uma inflamação que ocorre no parênquima cerebral resultante de processos imuno mediados com anticorpos que agem contra antígenos presentes na estrutura neuronal. Geralmente apresenta início de curso agudo e subagudo, podendo tornar-se crônico. É considerar uma das causas mais comuns de encefalite aguda de causa não-infecciosa.
A identificação de autoanticorpos neurais com alta especificidade para essa condição proporcionou um aumento no seu diagnóstico. Contudo, há casos de pacientes com manifestações clínicas e exames compatíveis que acabam sendo soronegativos no painel imunológico. Nesse cenário, com o objetivo de auxiliar o diagnóstico de encefalite autoimune, foi publicado por Graus F. e colaboradores, em 2016, na revista Lancet, as diretrizes com os critérios diagnósticos dessa condição.
Atualmente os critérios diagnósticos de encefalite autoimune são divididos em diagnóstico possível, provável e definitivo.
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Critérios para diagnóstico
1. Início subagudo de déficit de memória de curto prazo (com uma evolução progressiva em menor de 3 meses), alteração do estado mental (letargia, mudanças em personalidade ou alteração do sensório) ou sintomas psiquiátricos; 2. Presença de pelo menos 1 desses achados: déficits neurológicos focas de sistema nervoso central (SNC), crises epilépticas não justificadas por transtorno prévio, pleocitose em líquor, ressonância de crânio com achados de encefalite. 3. Exclusão razoável de diagnósticos alternativos.
A capacidade de discernir entre as subcategorias diagnósticas (possível, provável e definitivo; soronegativo ou soropositivo) assim como enfalopatias não relacionadas ao critério de EA possível, são importantes para avaliar e guiar decisões terapêuticas. A Neurology, nesse ano, publica estudo observacional que se propõe a avaliar essas características em uma coorte com 538 adultos na Mayo Clinic.
Métodos
Trata-se de estudo retrospectivo com avaliação de registros eletrônicos de prontuário entre janeiro de 2006 a dezembro de 2020, em que 538 participantes foram avaliados com encefalite autoimune ou transtorno relacionado por neuroimunologistas da Mayo Clinic após exclusão de outras causas não imuno mediadas.
A partir dessa amostra, os registros eletrônicos foram revisados quanto aos dados demográficos,
clínicos e de exame complementares. Para àqueles participantes que preenchem critérios para diagnóstico possível de EA, foram revisadas as características clínicas e complementares (exames de ressonância, raquicentese, resultados de anticorpos antineurais e, se presente, biópsia cerebral) a fim de estratificar em subgrupos de EA: diagnóstico definitivo, soronegativo, porém provável, encefalopatia de Hashimoto, ADEM ou encefalite por Bickerstaff. Além disso, todos os participantes foram submetidos a pesquisa de anticorpos neurais relacionados à encefalite autoimune no laboratório de neuroimunologia da Mayo Clinic tanto em material sérico quanto liquórico.
Resultados
Entre os 538 adultos participantes, 52% eram homens com idade cuja mediana ficou em torno de 55 anos. Foi observado que 54% da amostra apresentou detecção de pelo menos um anticorpo específico para encefalite autoimune.
De todos os avaliados, 361 participantes, isto é 67% da amostra, apresentaram preenchimento para diagnóstico possível de encefalite autoimune. Entre os 221 participantes (41% da amostra global) com diagnóstico definitivo dessa condição, 87% destes apresentaram anticorpo neural positivo. Entre esses pacientes soropositivos, os 3 anticorpos mais prevalentes foram: LGI-1 (34%), receptor NMDA (16%) e GAD65 (12%). Entre esses 221 participantes, 60% deles necessitaram da presença de positividade sorológica para preencher os critérios definitivos. 18 participantes apresentaram diagnóstico provável da doença apesar de serem soronegativos, em virtude de possuírem achados suportivos tanto em ressonância de crânio quanto líquor – além de que em 5 casos apresentaram evidência de infiltrado inflamatório por biópsia cerebral.
Interessante destacar que 177 (33% dos 538 adultos) participantes avaliados e diagnosticados com encefalite autoimune não apresentaram preenchimento para diagnóstico possível de encefalite autoimune segundo os critérios de 2016. Destes, 120 (68%) apresentavam apenas eventos isolados de crises epilépticas (12% dos 538) e encefalite de tronco encefálico sem alterações supra-tentoriais (10% dos 538). Os 57 participantes remanescentes apresentaram características diversas que sustentassem etiologia imuno mediada: síndrome neurocognitiva sugestiva (82% dos 57), início subagudo (63%), achados focais de SNC (26%) ou alterações inflamatórias em líquor (26%) ou presença de anticorpos específicos para EA (26%).
Entre os subgrupos soropositivos mais comuns em toda a coorte (LGI-1, NMDA-R e GAD65), 54 de 160 (34%) participantes não preencheram critérios para diagnóstico possível de encefalite autoimune. Destes, 34% eram soropositivos para LGI-1 (em que a maioria apresentou manifestação apenas com crises epilépticas), 53% eram soropositivos para GAD65 (em que a maioria também apresentou apenas crises epilépticas) e 3% eram soropositivos para NMDA-R (que não preencheram critérios suporte).
Comentários
Um dado importante é que, além das manifestações clínicas descritas nos guidelines de encefalite autoimune, nesse estudo foi encontrado manifestação de crises epilépticas isoladas em 12% dos casos – frequência similar a outras descrições na literatura. Os autores enfatizam esse achado para a encefalite LGI-1 que muitas vezes se apresenta no contexto de crises epilépticas isoladas em 1/3 dos casos, a despeito da figura clínica típica de encefalite autoimune. Contudo, vale destacar que essa parcela acaba não sendo contemplada nos critérios diagnósticos dos guidelines de 2016. Por outro lado, aplicar os critérios diagnósticos de 2016 foi sensível suficiente para detectar os 32 casos de encefalite anti-NMDA-R exceto em 1 paciente que não apresentou início subagudo.
Apesar da especificidade dos critérios diagnósticos de 2016, 57 participantes não contemplaram requisitos para o diagnóstico possível ou história de crises epilépticas isoladas e encefalite de tronco encefálico e, ainda assim, persistia a suspeita para etiologia imuno mediada. Destes, 42 pacientes foram soronegativos (7,8%) – o que reforça a importância de pesquisas na área de biomarcadores para auxiliar o desafio diagnóstico desses casos.
Uma sugestão realizada pelos autores desta publicação foi que uma forma de aumentar a sensibilidade do diagnóstico possível de encefalite autoimune seria incluir as manifestações de crises epilépticas isoladas (que são frequentes, focais e não justificadas por transtornos prévios), além de manter os critérios já definidos e a necessidade de excluir diagnósticos diferenciais.
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Mensagens práticas
Dois terços dos pacientes preencheram critérios para diagnóstico possível de encefalite autoimune.
Em amostra desse estudo, 12% das encefalites autoimunes não apresentaram as manifestações para definição possível de encefalite autoimune segundo os critérios publicados em 2016. Nessa parcela, tais pacientes apresentaram, como manifestação clínica, crises epilépticas isoladas.
É imprescindível o prosseguimento de pesquisas na área de biomarcadores de encefalite autoimune em virtude da presença de casos ainda soronegativos que tornam a definição diagnóstica ainda um desafio.
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