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Medicina de Emergência21 fevereiro 2017

Surviving Sepsis 2016: velhos mitos caíram, outros permanecem (Parte 2)

Para concluir nossa análise, trazemos a segunda parte desta postagem com os principais pontos de inconsistência em relação às evidências mais recentes.

Por Eduardo Moura

Ao longo das últimas duas semanas, o Portal da PEBMED se comprometeu em publicar uma série de reportagens sobre as novas diretrizes do Surviving Sepsis (SS) de 2016. Para concluir nossa análise, trazemos a segunda parte desta postagem com os principais pontos de inconsistência da publicação em relação às evidências científicas mais recentes.

Veja aqui a parte 1 da publicação!

Mito 4: Pacientes sépticos devem receber, no mínimo, 30 mL/kg de cristaloides na abordagem inicial

Neste caso, a grande falha do protocolo é a generalização. Determinar um mínimo de reposição volêmica a ser administrado é, no mínimo, arriscado. Embora 30 mL/Kg possa parecer razoável para boa parte dos pacientes, aplicar este conceito a todo tipo de paciente deveria ser desaconselhado e não encorajado. Comumente nos deparamos com pacientes com múltiplas comorbidades (cardiopatas, portadores de doença renal crônica ou hipertensão pulmonar) cujo perfil hemodinâmico tende à hipervolemia, nos quais, portanto, uma etapa de 30 mL/kg poderia ser deletéria para função cardíaca e pulmonar.

Mito 5: Tratamento antibiótico deve ser administrado o mais rápido possível, idealmente em até 1 hora

Por esta você não esperava! Estamos deixando o melhor para o final! Um dos conceitos primordiais da campanha é o “Golden hour” que, entre outras coisas, estimula o início precoce da antibioticoterapia, idealmente na primeira hora do atendimento. A grande verdade é que este conceito é baseado em estudos retrospectivos que correlacionaram o tempo de início da antibioticoterapia com o desfecho, o que, no entanto, nunca se confirmou por estudos prospectivos, e que foi, inclusive, recentemente contestado por metanálise que comparou utilizar antibióticos nas primeiras 3 horas contra na primeira hora, e não achou nenhum benefício de mortalidade no uso precoce.

Mito 6: O lactato deve ser utilizado como marcador de perfusão tecidual e sua normalização deve ser o alvo da ressuscitação inicial

Outro mito que é difícil de se desapegar, mas que todo mundo já sentiu na prática o quanto o lactato é um marcador ruim de perfusão tecidual. Não há plausibilidade biológica ou evidência científica que justifique sua adoção em protocolos. No paciente séptico, a causa principal de elevação é a estimulação beta-2-adrenérgica (tanto endógena quanto exógena), que leva o fígado a liberar lactato como fonte de energia para órgãos nobres. Ou seja, não é natural querer normalizar o lactato, pois o paciente permanecerá em estresse metabólico. O principal motivo pelo qual os pacientes normalizam lactato na sepse, também não é a reposição de fluídos melhorando a perfusão tecidual, e sim a supressão da adrenalina endógena, quando administramos a noradrenalina exógena.

Mas por que o SS insiste tanto no lactato? O SS se baseia em 5 estudos heterogêneos altamente contestáveis, um destes chega a compará-lo com a saturação venosa de oxigênio, mostrando equivalência entre as estratégias de monitoramento. Mas calma aí… a saturação venosa de oxigênio já se mostrou inefetiva! Provavelmente o lactato é tão inefetivo quanto. A preocupação maior aqui parece ser em encontrar estudos que comprovem a estratégia, e não achar necessariamente a melhor evidência científica.

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Mito 7: Tratamento precoce guiado por metas

Está aí o mito que caiu! Dessa vez o SS marcou ponto, admitiu que a terapia guiada por meta não tem benefício (falta desapegar do lactato) e removeu este conceito do novo guideline.

No final das contas, foram 6 mitos preservados contra 1 quebrado, quase um 7×1 da Alemanha. Embora as críticas, sou um grande fã do Surviving Sepsis, e reconheço o valor da instituição e publicação. É inegável o valor que a campanha agregou ao cuidado da sepse, estimulou o mundo todo a olhar para a doença e adotar medidas de controle da mesma. Como tudo na medicina, seu conhecimento não é imutável, e chegou o momento em que precisamos questioná-lo.

Precisamos questionar os protocolos de sepse, o quanto mecanizam o atendimento, o quanto levam ao “overtreatment” e “overdiagnosis”, o quanto a rapidez na intervenção é de fato o determinante do desfecho, a despeito de uma avaliação criteriosa e abordagem personalizada. Se por um lado o protocolo normaliza condutas, por outro admitimos que ao utilizá-lo não estamos considerando a individualidade de cada paciente, o que tem se mostrado cada vez mais relevante no desfecho. Protocolos mais flexíveis são a resposta? Esta é a pergunta que fica aqui. Esperamos que com ensaios clínicos mais rigorosos, pesquisas clínicas menos enviesadas e meta-análises melhor selecionadas possamos refinar estes conceitos, e que possamos finalmente admitir que a abordagem à sepse é baseada em evidência.

Referências Bibliográficas & Leitura Complementar:

  • Andrew Rhodes, MB BS, MD et al. Surviving Sepsis Campaign: International Guidelines for Management of Sepsis and Septic Shock: 2016. Critical Care Medicine. DOI: 10.1097/CCM.0000000000002255
  • Anthony C. Gordon, MD; Alexina J. Mason, PhD; Neeraja Thirunavukkarasu, MSc; et al. Effect of Early Vasopressin vs Norepinephrine on Kidney Failure in Patients With Septic Shock: The VANISH Randomized Clinical Trial. JAMA. 2016;316(5):509-518. doi:10.1001/jama.2016.10485
  • Hajjar LA1, Vincent JL et al. Vasopressin versus Norepinephrine in Patients with Vasoplegic Shock after Cardiac Surgery: The VANCS Randomized Controlled Trial. Anesthesiology. 2017 Jan;126(1):85-93. DOI: 10.1097/ALN.0000000000001434
  • Sterling SA1, Miller WR et al. The Impact of Timing of Antibiotics on Outcomes in Severe Sepsis and Septic Shock: A Systematic Review and Meta-Analysis. Crit Care Med. 2015 Sep;43(9):1907-15. doi: 10.1097/CCM.0000000000001142.
  • Alan E. Jones, MD, Nathan I. Shapiro, MD, MPH et al. Lactate Clearance vs Central Venous Oxygen Saturation as Goals of Early Sepsis Therapy: A Randomized Clinical Trial. JAMA. 2010 Feb 24; 303(8): 739–746. doi: 10.1001/jama.2010.158
  • Garcia-Alvarez M, Marik PE, Bellomo R. Sepsis-associated hyperlactatemia. Critical Care 2014; 18: 503.
  • Marik PE and Bellomo R. Lactate clearance as a target of therapy in sepsis: a flawed paradigm. Open Access Critical Care 2013.
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