Nos conflitos entre os deuses mitológicos, o titã Prometeu, defensor da humanidade, roubou o fogo (exclusivo dos deuses) de Zeus e o entregou aos mortais, garantindo a superioridade dos homens sobre os animais. Zeus, então, encarregou Hefesto, deus do fogo e dos metais, e Atena, deusa da justiça e da sabedoria, de criar Pandora, recusada por Prometeu, mas aceita por Epimeteu, seu irmão.
Pandora, a primeira mulher, com diversas qualidades (graça, beleza, inteligência, paciência, meiguice, dança e trabalhos manuais) tinha com o único defeito a curiosidade. Ela recebe de Zeus uma caixa, a qual na verdade era um jarro cuja recomendação era de que não poderia ser aberto. Este continha a reunião de todos os males do mundo (guerra, discórdia, ódio, inveja, doenças do corpo e da alma), colocados ali pelos deuses, e sabia-se que um dia Pandora iria abri-la. Curiosamente, um único fator positivo se encontrava ali misturado: a esperança.
Pandora, alimentada por sua curiosidade, abriu a caixa e libertou todos os males. Arrependida, tornou a fechá-la, mas manteve a esperança ali presa.
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Impacto da Covid-19
A pandemia mais mortal registrada anteriormente consistiu na influenza disseminada em 1918 que somou 50 ou mais milhões de mortes (o equivalente a 200 milhões de pessoas considerando a proporção na população mundial atual). Após esse marco histórico, outras epidemias e pandemias foram registradas mas com menor significância até o final de 2019.
A pandemia da síndrome respiratória Covid-19 associada ao coronavírus SARS-CoV-2 provavelmente atingiu, direta ou indiretamente, a população mundial em quase sua totalidade. Em poucos meses foi declarada uma emergência na Saúde Pública internacional. Pergunta-se quem saiu ileso às transformações importantes nos setores socioeconômicos, médicos, científicos, governamentais, e comportamentais decorrentes da disseminação da Covid-19? O que se espera no futuro, ainda sem perspectivas de controles efetivos da doença em inúmeros países? Mediante tantos recursos tecnológicos e científicos, continuamos a assistir a progressão dos diversos impactos do novo marco histórico causado pela atual pandemia de Covid-19.
Em uma população aproximada de 7,8 bilhões de pessoas, a combinação de mudanças ambientais, comportamentais e mecanismos inadequados globais da Saúde Pública nos permitiu tornar vírus animais em potenciais ameaças humanas capazes de alterar literalmente toda a velocidade do mundo. No longo reinado do império humano, criamos um ecossistema globalmente dominado pelos seres humanos que servem como um excelente playground para a emergência de zoonoses com alto potencial de disseminação horizontal, especialmente de vírus RNA com seus mecanismos de reparo caracteristicamente defeituosos, resultando em altas taxas de mutação. Enquanto o genoma humano requer cerca de 8 milhões de anos para evoluir 1%, o vírus RNA conseguem alterar 1% do seu genoma em questão de poucos dias.
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Atualmente, conseguimos imaginar o cenário caótico de 1918 e de outras pandemias posteriores originadas de zoonoses provenientes de suínos, aves, camelos e etc. Particularmente os coronavírus SARS-CoV-2, assim como os patógenos anteriores SARS e MERS, aparentemente tiveram suas origens em vírus enzoóticos de morcegos. Devemos lembrar também o surgimento do vírus da imunodeficiência humana adquirida (HIV) a partir de primatas com disseminação inicial pela África em rotas de caminhões e práticas sexuais. A origem do Ebola permanece incerta no oeste africano, mas prévias das possíveis explosões de casos por doenças graves letais novas ocorreram entre 2014-2016. Outros perdigotos que brotam do jarro de Pandora incluem os arenavírus, vírus Nipah, vírus Zika, vírus Chikungunya, e muitos outros.
Exacerbação de problemas
Alguns aspectos negativos na sociedade atual se destacam perante as novas ameaças microbianas que emergem a cada novo ano: (i) infraestrutura inadequada em diversos sistemas de saúde em todo o mundo; (ii) sistemas de informação precários; (iii) desenvolvimento científico ainda incapaz de prever ou antecipar medidas de controle de novas epidemias; (iv) limitações das equipes de profissionais de saúde; (v) o distanciamento da política das decisões da evidências científicas, como barreira para medidas efetivas no controle de doenças infeciosas; (vi) a multiplicação exponencial das incertezas e informações tendenciosas; (vii) inadequação sanitária em inúmeros países; (viii) aumento excessivo da população mundial; (ix) a desigualdade social; (x) os anos acumulados de menosprezo à Saúde Mental; e muitos outros.
Nesse contexto, descobrimos que o nosso maior inimigo está no espelho. Somos nós mesmos.
Esperava-se que a incidência da Covid-19 iria diminuir frente a diversas hipóteses e teorias, como imunidade de rebanho, ambiente tropical etc, mas já estamos próximos do aniversário de um ano desde a descrição do novo coronavírus, e continuamos vendo as ondas acontecerem em inúmeros países do mundo, assim como as respostas somente lentamente chegarem às suas perguntas.
Mas se a esperança continuar presa na caixa de Pandora e não sofrer as devidas transformações aplicáveis à reversão do cenário ao qual chegamos atualmente, continuaremos assistindo a persistência do fogo dos seres humanos na contínua destruição das vidas, mesmo em autoflagelação. Outros detalhes sobre o paralelo dessa discussão podem ser observados nas referências abaixo.
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Referências bibliográficas:
- Azim D, Kumar S, Nasim S, Arif TB, Nanjiani D. COVID-19 as a psychological contagion: A new Pandora’s box to close? Infect Control Hosp Epidemiol. 2020 Aug;41(8):989-990. doi: 1017/ice.2020.127
- El-Wajeh Y, Varley I, Raithatha A, Glossop A, Smith A, Mohammed-Ali R. Opening Pandora’s box: surgical tracheostomy in mechanically ventilated COVID-19 patients. Br J Anaesth. 2020 Oct;125(4):e373-e375.
- Morens DM, Daszak P, Taubenberger JK. Escaping Pandora’s Box – Another Novel Coronavirus. N Engl J Med. 2020 Apr 2;382(14):1293-1295.
- Morens DM, Folkers GK, Fauci AS. The challenge of emerging and re-emerging infectious diseases. Nature 2004; 430: 242-9.
- Morens DM, Taubenberger JK. Influenza cataclysm, 1918. N Engl J Med 2018; 379:2285-7.
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