Como o encarceramento em massa contribui para a epidemia de tuberculose?
A tuberculose é uma doença infecciosa que permanece como um importante problema de saúde pública global, afetando cerca de 10,6 milhões de pessoas em 2022. Embora a incidência global de tuberculose tenha diminuído em 8,7% desde 2015, a América Latina tem registrado um aumento de 19% no mesmo período, evidenciando a urgência de se abordar fatores que impulsionam a epidemia na região. Um desses fatores é o encarceramento em massa, que quadruplicou nos últimos 30 anos, representando um dos mais rápidos crescimentos no mundo. Para avaliar essa possível correlação, um estudo de 2024 publicado na The Lancet Public Health, objetivou quantificar o impacto do encarceramento sobre a epidemia de tuberculose e projetar os efeitos de alternativas de políticas para a região.
O estudo utilizou modelos dinâmicos compartimentais de transmissão calibrados com dados de Argentina, Brasil, Colômbia, El Salvador, México e Peru, cobrindo aproximadamente 80% da população carcerária e da carga de tuberculose na região. Cada país foi modelado de forma independente, considerando dados de tuberculose e encarceramento entre 1990 e 2023. O modelo excluiu fatores como HIV, resistência medicamentosa, gênero ou sexo, e estrutura etária. Cenários contrafactuais históricos foram simulados para estimar o impacto do aumento do encarceramento na incidência de tuberculose, assim como o efeito de políticas alternativas de encarceramento até 2034.
Leia mais: Prevenção da tuberculose: qual método é mais eficaz?
Resultados
Em 2019, a incidência de tuberculose foi 29,4% maior do que o esperado na ausência do aumento do encarceramento desde 1990 (IC 95% 23,9-36,8), correspondendo a 34.393 casos incidentes adicionais. O impacto do encarceramento foi superior a outros fatores de risco como HIV, alcoolismo e desnutrição. O modelo demonstrou que uma redução gradual de 50% nas admissões e na duração de encarceramentos até 2034 poderia reduzir a incidência de tuberculose em mais de 10% em todos os países estudados, exceto no México.
Os resultados do estudo sugerem que o aumento histórico do encarceramento na América Latina ao longo desses anos foi um fator importante, porém subestimado, para a carga de tuberculose na região. A taxa de incidência da tuberculose em prisões é 26 vezes maior do que na população geral, sendo exacerbada pelas condições precárias das unidades prisionais, como superlotação, ventilação inadequada e acesso limitado à saúde.
Além disso, a liberação de indivíduos infectados contribui para a disseminação da doença na comunidade. Este efeito é ampliado pelo fato de muitos desses indivíduos não apresentarem a doença até após a sua liberação, o que dificulta a associação direta com o ambiente prisional.
Implicações Práticas
O estudo destacou, portanto, o encarceramento como um fator determinante não apenas para a disseminação de tuberculose dentro das prisões, mas também como um propulsor da epidemia em nível populacional. A estimativa da carga de tuberculose atribuível ao encarceramento é significativamente maior do que as estimativas baseadas apenas em notificações prisionais, que não consideram os indivíduos que adquirem a infecção e a desenvolvem após serem liberados. Medidas de prevenção, profilaxia e tratamento não devem se restringir à população prisional, mas também incluir indivíduos que foram previamente encarcerados e seus contatos.
A análise dos cenários futuros de encarceramento mostrou que a redução nas taxas de admissão e na duração das penas poderia ter um impacto substancial na redução da incidência da tuberculose em países como Brasil, Colômbia e Peru. Especificamente no Brasil, o estudo sugere que uma redução de 50% nas admissões e na duração do encarceramento até 2034 poderia reduzir a incidência da tuberculose em até 28,9% (IC 95% 22,0-36,7). Estes resultados são consistentes com intervenções similares realizadas no Cazaquistão, onde a redução da população carcerária levou a uma queda de 90% na incidência de tuberculose em prisões.
Veja também: Incidência e fatores de risco para tuberculose ativa em contatos domiciliares
Conclusão
Assim, pode-se afirmar que o encarceramento em massa é um fator determinante de impulsionamento da epidemia de tuberculose no Brasil e na América Latina. A adoção de políticas de redução da população carcerária e alternativas penais são medidas fundamentais para diminuir a carga de tuberculose na região, sendo tão importantes quanto as intervenções médicas dentro das prisões. Agências de saúde internacionais e programas nacionais de tuberculose devem trabalhar em conjunto com sistemas judiciais para formular estratégias abrangentes que contribuam para a eliminação da tuberculose.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.