O câncer do colo do útero é o terceiro tipo de câncer mais comum entre as mulheres no mundo. Com os avanços nos métodos de rastreamento e nos programas de vacinação nos países desenvolvidos, a diferença na carga da doença em relação aos países de menor renda se torna ainda mais evidente. Além disso, a maioria das mortes ocorre em países em desenvolvimento, onde essa doença é a principal causa de morte por câncer entre mulheres.
Mais de 99% das lesões pré-cancerosas e carcinomas cervicais são causados pELA infecção por HPV (Papiloma vírus humano) de alto risco. Aproximadamente 70% dos casos de câncer do colo do útero são causados pelos tipos 16 e 18. Outros tipos oncogênicos incluem os tipos 31, 33, 35, 39, 45, 51, 52, 56, 58, 59 e 68.
Novas tecnologias para o rastreamento, como a pesquisa molecular do HPV, foram desenvolvidas para permitir um rastreio mais rápido, econômico e sensível, com potencial de reduzir significativamente a incidência da doença.
Em 2020, o Brasil pactua com a Organização Mundial da Saúde (OMS) sua estratégia global para eliminar o câncer do colo do útero. O pacto prevê, até 2030, a imunização de 90% das meninas até os 15 anos com a vacina contra o HPV, o rastreamento de 70% das mulheres através de exames de alta precisão e o tratamento adequado para 90% das mulheres diagnosticadas com a doença.
Em fevereiro de 2024, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) aprovou a incorporação do teste molecular para detecção do HPV. A decisão foi publicada em março de 2024. As Diretrizes Brasileiras para o Rastreamento do Câncer de Colo Uterino estão sendo reformuladas e serão publicadas em breve.
O presente artigo traz uma revisão sobre os métodos de rastreamento do câncer de colo uterino existentes e sua história.
O Exame de Papanicolau e o Rastreio Baseado em Citologia
Na década de 1920, o Dr. George Papanicolaou tornou-se capaz de diferenciar células cervicais normais e malignas apenas observando amostras em lâminas microscópicas. O Dr. Papanicolaou continuou suas pesquisas em colaboração com o Dr. Herbert Traut, um patologista do Hospital de Nova York e suas colaborações foram publicadas em seu livro de 1943, Diagnosis of Uterine Cancer by the Vaginal Smear (Diagnóstico do Câncer Uterino pelo Esfregaço Vaginal). A obra mostrou de forma importante que esfregaços vaginais e cervicais, tanto normais quanto anormais, podiam ser observados microscopicamente. Esse procedimento ficou conhecido convencionalmente como o exame de Papanicolaou, atualmente também conhecido como preventivo ginecológico. Com custo relativamente baixo, facilidade de execução e boa reprodutibilidade, o exame de Papanicolaou rapidamente tornou-se o padrão-ouro na triagem do câncer cervical.
Na década de 1990, avanços na citotecnologia levaram ao desenvolvimento da citologia ou preventivo em meio líquido. Apesar de diversas vantagens descritas, como melhor coleta e preparação das células, filtragem de sangue e detritos, e menor número de resultados insatisfatórios, vários estudos não demonstraram diferença significativa na acurácia para a detecção de lesões intraepiteliais cervicais em comparação com o preventivo convencional. De fato, seu maior benefício se refere ao uso da mesma amostra para pesquisa molecular de HPV e outros agentes de infecções sexualmente transmissíveis.
De forma geral, o exame de Papanicolau demonstrou especificidade consistente (aproximadamente 98%), com estimativas de sensibilidade mais baixas e variáveis (cerca de 55 a 80%) para a detecção de lesões intraepiteliais cervicais e câncer invasivo. A baixa sensibilidade é compensada pela repetição periódica da triagem ao longo da vida da maioria das mulheres.
O rastreamento do câncer cervical baseado em citologia reduziu drasticamente as taxas de incidência e mortalidade da doença (cerca de 70%). Em países desenvolvidos com programas de triagem bem estabelecidos e onde as mulheres são examinadas em intervalos regulares, os programas baseados em citologia provaram ser um método eficaz de prevenção do câncer.
No entanto, em contextos com poucos recursos, os programas de triagem baseados em citologia têm se mostrado difíceis de implementar. É necessário eletricidade para operar os microscópios, suprimentos e citopatologistas treinados. Além disso, o sucesso do exame depende da continuidade ao longo do tempo, o que é difícil em populações sem infraestrutura adequada. O acompanhamento de pacientes em áreas rurais também é um desafio, já que muitas pessoas não conseguem se deslocar até os locais de triagem ou retornar caso o exame indique alteração. Assim, o exame de Papanicolaou torna-se menos confiável, menos custo-efetivo e logisticamente inviável como método de triagem em muitas partes do mundo.
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Citologia e Co-teste com HPV
Atualizações recentes nas diretrizes de rastreamento do câncer do colo do útero incluem a adição do teste de HPV à citologia cervical. O teste de DNA do HPV pode ser realizado em amostras cervicais por meio de técnicas de amplificação de sinal ou amplificação de ácido nucleico com reação em cadeia da polimerase (PCR). Em 2003, o teste Hybrid Capture II HPV-DNA Assay (Digene) tornou-se o primeiro teste aprovado pela FDA para a detecção de HPV de alto risco. Desde então, outros quatro testes também receberam aprovação da FDA: Cervista HPV HR (Hologic), Cervista HPV 16/18 (Hologic), Cobas HPV test (Roche Molecular Systems) e APTIMA HPV Assay (Gen-Probe).
Em 2003, a FDA aprovou o uso do teste de HPV de alto risco em combinação com a citologia (ou “co-teste”) para rastreamento do câncer cervical, especificamente em mulheres com 30 anos ou mais. Como a infecção por HPV de alto risco em mulheres com menos de 30 anos apresenta alta prevalência, a identificação do HPV nesse grupo pode levar a tratamentos excessivos e desnecessários.
A combinação do teste de HPV de alto risco com a citologia pode aumentar a sensibilidade de um único teste de Papanicolau para neoplasias de alto grau de 50–85% para quase 100%. Devido ao alto valor preditivo negativo para neoplasias de alto grau, à progressão relativamente lenta da infecção por HPV para neoplasia e ao custo aumentado, o co-teste pode ser realizado a cada 5 anos, desde que ambos os resultados sejam negativos.
Teste de HPV como Triagem Primária para Câncer Cervical
Nos últimos anos, os pesquisadores estudaram a utilidade do teste de HPV isoladamente como uma modalidade primária de triagem. Um grande estudo realizado nos Estados Unidos sobre a triagem primária de HPV, conhecido como o estudo “Addressing the Need for Advanced HPV Diagnostics“, demonstrou que o teste de HPV apresentou eficácia equivalente ou superior à da citologia isolada para triagem primária do câncer cervical.
Assim, em 2014, a FDA modificou o rótulo do teste de HPV Cobas da Roche para incluir a indicação adicional de triagem primária para o câncer cervical (triagem primária de HPV) em mulheres a partir dos 25 anos. Neste estudo, os espécimes positivos foram submetidos à genotipagem de HPV. Se o teste fosse positivo para HPV 16 ou 18, a colposcopia era realizada, dado o maior risco de lesão associado a estes tipos virais. Se um espécime fosse negativo para HPV 16 e 18, o teste citológico era realizado de forma reflexa, ou seja, posterior. Os resultados anormais então eram encaminhados para colposcopia. Se os resultados da citologia fossem normais, o co-teste era repetido em 1 ano.
Uma vantagem significativa de usar o teste de HPV para a triagem primária é o potencial de simplificação na coleta, possibilitando inclusive a auto-coleta. Isso pode ser especialmente benéfico em ambientes de poucos recursos.
Em uma meta-análise realizada por Ogilvie et al., as sensibilidades e especificidades da auto-coleta comparadas àquelas coletadas por médicos para detectar HPV foram semelhantes (74% e 88% contra 81% e 90%, respectivamente).
Atualmente, o maior problema com o teste de HPV é o custo, a necessidade de processamento laboratorial e o tempo para obter os resultados. Sistemas rápidos, mais sensíveis e de baixo custo baseados em reação em cadeia da polimerase para teste de HPV estão atualmente aprovados na China e na Europa, e estão aguardando aprovação da FDA.
Métodos De Visualização Como Triagem Primária Do Câncer Cervical
Devido às limitações da citologia discutidas anteriormente, métodos alternativos de triagem foram desenvolvidos. A visualização cervical com ácido ácetico (VIA) ou a visualização com iodo de Lugol (VILI) surgiram como métodos de triagem precisos e com boa relação custo-benefício em locais com poucos recursos.
A VIA envolve a aplicação de ácido acético a 3%-5% no colo do útero e, em seguida, a observação a olho nu para identificar áreas acetobrancas nítidas e bem definidas. Idealmente, a VIA requer uma área de exame privativa, uma boa fonte de luz e profissionais de saúde bem treinados para interpretar os resultados.
Em comparação com as sensibilidades e especificidades relatadas da citologia cervical em locais com poucos recursos, a VIA pode ser um método de triagem mais preciso. A VIA também é de baixo custo, simples, segura e pode ser realizada por uma ampla gama de profissionais médicos. As limitações da VIA surgem em populações onde as taxas de cervicite são significativas, pois as células cervicais infectadas se transformam em lesões acetobrancas após a aplicação de ácido acético, levando a resultados falso-positivos, sobretratamento e maior risco de complicações infecciosas.
Resumo e mensagem prática
Uma mulher que realiza apenas uma vez na vida um teste de rastreamento após os 35 anos diminui seu risco de morrer de câncer cervical em 70%. Seu risco de morrer de câncer cervical cai em mais de 85% se ela for rastreada a cada 5 anos. No entanto, mais de 1,5 bilhão de mulheres em todo o mundo nunca foram rastreadas para câncer cervical.
O rastreamento tradicional baseado em citologia não é uma opção viável para rastrear essas 1,5 bilhão de mulheres. As novas tecnologias discutidas, aplicadas da melhor forma e de maneira sistemática nos diversos cenários globais, oferecem uma maneira de atingir esse objetivo.
Esperamos que o uso do teste de HPV em nosso país, em breve, com a possibilidade de auto-coleta para áreas de díficil acesso, possa de fato nos ajudar a cumprir a meta de eliminação do câncer de colo uterino com redução da triste realidade da morbimortalidade desta doença.
Não podemos esquecer de orientar sempre toda a população, meninas e meninos, homens e mulheres, sobre a vacinação contra o HPV como a melhor forma de prevenção primária, não só do câncer de colo uterino, mas também de doenças HPV induzidas em outros sítios, todos grandes desafios para a saúde mundial.
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