A doença hepática alcoólica representa uma grande impacto para o sistema público de saúde, sendo responsável por uma das principais indicações de transplante hepático. O tratamento dos transtornos relacionados ao álcool é capaz de prevenir ou reduzir as complicações relacionadas a esteatohepatite alcoólica. Medicamentos aprovados pelo FDA para o tratamento do etilismo incluem dissulfiram, naltrexona e acamprosato.
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No entanto, o risco de hepatotoxicidade e a ausência de dados em pacientes portadores de cirrose são ainda barreiras na utilização rotineira desses fármacos. A naltrexona, especificamente, é um antagonista μ-opioide que pode diminuir o consumo de álcool, prevenindo recaídas com eficácia superior ao baclofeno e acamprosato. Recentemente, Ayyala e colaboradores avaliaram a segurança hepática do uso de naltrexona, incluindo pacientes com doença hepática estabelecida.
Metodologia do estudo
Estudo de coorte retrospectiva que incluiu pacientes ≥ 18 anos de idade tratados com naltrexona para transtornos relacionados ao álcool entre 24 de maio de 2015 e 10 de novembro de 2019. Os pacientes foram subdivididos em dois grupos: (i) sem doença hepática (n = 60) e (ii) com doença hepática (n = 100) com base na evidência radiográfica de esteatose hepática, presença de superfície hepática nodular ou evidência de hipertensão portal na imagem hepática (esplenomegalia ou colaterais intra-abdominais) em combinação com elevações nas enzimas hepáticas (alanina aminotransferase [ALT], aspartato aminotransferase [AST]), bilirrubina total, INR e/ou trombocitopenia. Entre os pacientes com doença hepática, a presença de cirrose foi definida por escore FIB4 ≥ 3,25, códigos de CID-10 compatíveis com cirrose, ou fígado com imagem demonstrando a superfície hepática nodular ou hipertensão portal em combinação com elevação no INR ou trombocitopenia (n = 47). Pacientes com histórico de ascite, sangramento digestivo varicoso, peritonite bacteriana espontânea, cirrose Child-Pugh B/C ou encefalopatia hepática foram classificados como cirrose descompensada (n = 22).
Os dados dos pacientes foram coletados antes, durante e após o uso de naltrexona. Os desfechos analisados foram:
- Diferenças globais e por grupo na média de AST, ALT, fosfatase alcalina (FA) e bilirrubina total antes, durante e após a naltrexona. Elevações de enzimas hepáticas foram definidos como (i) ≥ 3× o limite superior do normal (LSN) se os resultados laboratoriais de pré-naltrexona dos pacientes estivessem dentro os limites ou (ii) ≥ 3× o valor laboratorial da pré-naltrexona se os exames laboratoriais pré-naltrexona estivessem acima do LSN. Hepatite grave foi definida como elevações de ALT e AST >10× LSN (ALT > 190 U/L para mulheres, > 300 U/L para homens; ou AST > 1500 U/L; ou bilirrubina total > 10 mg/dl).
Resultados
Dos 160 pacientes que receberam naltrexona para tratamento de transtornos relacionados ao álcool, 100 (63%) tinham doença hepática, sendo que 47 (47%) desses tinham cirrose (22; 47% descompensada). A maioria dos pacientes era homem com média de idade de 49 anos. Dentre os pacientes cirróticos, 42% foram classificados como Child-Pugh A, 37% Child B e 21% Child C. O MELD mediano global, cirrose compensada e descompensada foi de 10 (IQR, 8–16), 9 (IQR, 8–11), e 15 (IQR, 10–18), respectivamente. A duração mediana do tratamento com naltrexona foi de 57 dias (IQR, 28–115).
A coorte global, grupo doença hepática e subgrupo cirrose tiveram menor média ajustada níveis de AST, ALT e bilirrubina após prescrição de naltrexona, comparado com o valor basal (p<0,001), o que não foi observado no grupo sem doença hepática. Três casos de elevação de enzimas hepáticas foram observados após exposição a naltrexona: um caso de elevação de ALT (1,2 eventos [IC95%, 0,3–4,7] por 1.000 pessoas/ano) e dois casos de elevação grave de bilirrubina total.
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A sobrevida em dois anos foi de 97,7% (IC 95%, 84,6–99,7), 95,4% (IC 95%, 82,8–98,8), 90,8% (IC 95%, 73,5–97,0) e 81,3% (IC 95%, 41,2–93,8) naqueles sem doença hepática, com doença hepática mas sem cirrose, com cirrose, e com cirrose descompensada (p = 0,46), respectivamente. Nenhuma morte foi atribuída ao uso de naltrexona. As taxas de hospitalização de 2 anos relacionadas ao álcool foram de 8,2% (IC 95%, 2,7–24), 27,7% (IC 95%, 16,6–44,0), 40,5% (IC 95%, 24,8–61,6) e 41,7% (IC 95%, 23,3-66,6) para os grupos sem doença hepática, doença hepática sem cirrose, cirrose, e cirrose descompensada (p = 0,007), respectivamente. Preditores independentes de hospitalização subsequente foram doença hepática (HR 3,70; IC 95%, 1,19–11,51; p = 0,02), cirrose (HR 5,16; IC 95%, 1,69-15,75) e duração ≤ 30 dias da prescrição de naltrexona (HR 2,50; IC 95%, 1,12–5,20; p = 0,01).
Mensagens práticas sobre naltrexona para dependência de álcool
A naltrexona é segura para uso em pacientes com doença hepática subjacente, incluindo aqueles com cirrose compensada. O tratamento deve ser mantido por tempo longo, idealmente superior a 12 semanas. Deve-se atentar as limitações do estudo, especialmente o número pequeno de pacientes incluídos, análise retrospectiva, ausência de grupo controle não tratado com naltrexona e o tempo curto de seguimento. Embora encorajadores, ainda são necessários mais dados de segurança para aqueles com cirrose descompensada.
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