Assédio moral na residência médica: da caracterização à denúncia
O assédio moral tornou-se aceito durante décadas na educação médica, justificado por tradições institucionais ou como características da especialidade.
Desde a faculdade, os alunos de medicina tem contato com situações abusivas em sua rotina. O assédio moral tornou-se aceito durante décadas na educação médica, justificado muitas vezes por tradições institucionais ou decorrentes de características da especialidade. Os primeiros estudos específicos sobre assédio moral nesse ambiente surgiram na década de 1990, quando Leymann conceituou-o como sendo um terror psicológico no local de trabalho (Barreto, 2013, p. 16).
Atualmente a discussão sobre o assunto é pauta principalmente de estudos que envolvem a saúde mental do médico residente. O assédio moral sob a ótica da Organização Mundial da Saúde (lembrando que o médico residente apesar de ser considerado um estudante pode ser analogamente o trabalhador): “O cerco psicológico é uma forma de abuso do empregador que surge de comportamentos não éticos e conduz à vitimização do trabalhador’
A discussão acerca do assunto é tão atual que em maio deste ano o CREMESP atualizou o livro “Assédio Moral na Formação Médica: conscientizar para combater”’. A publicação conta com 10 capítulos e é disponibilizada gratuitamente na versão em PDF. Artigos internacionais confirmam ainda que a temática não é exclusiva do Brasil.
Frequentemente nos defrontamos com pessoas que assediam sem perceber a nocividade desse comportamento e outras que, são assediadas e não percebem a gravidade da situação. Assédio moral é um comportamento grave e não pode ser tratado como rotina. Maurício Godinho Delgado (2013) afirma que o assédio consiste em:
“atividade reiterada seguida pelo sujeito ativo no sentido de desgastar o equilíbrio emocional do sujeito passivo, por meio de atos, palavras, gestos e silêncios significativos que visem ao enfraquecimento e diminuição da autoestima da vítima ou outra forma de desequilíbrio e tensão emocionais graves”.
A formação médica tem a exigência diária de dedicação intelectual e física. Algumas vezes pode existir a confusão em detrimento da delgada linha que existe entre exigências diárias da prática médica com um comportamento abusivo por parte de um superior ou outros colegas.
O assédio moral instala-se e continua a protelar no tempo em ambientes laborais, nos quais a estrutura hierárquica é calcada no autoritarismo, produzindo relações desumanas e antiéticas. Fatores como a omissão e a falta de habilidade dos superiores em lidar com a situação também contribuem consideravelmente para a evolução do problema. Para níveis hierárquicos maiores, a indiferença é mais confortável do que solucionar o problema.
Na investida de determinar o que é um comportamento abusador, surgiu o termo assédio moral, que recebeu diferentes definições e denominações como mobbing, bullying, harassment. Os primeiros estudos na área constataram que os alunos entravam motivados e entusiasmados no curso de medicina e ao término do ciclo estavam frustrados e deprimidos.
Rosen et al. (2006) realizou um estudo nos Estados Unidos que comparava o estado de saúde mental dos residentes ao entrar na especialização e ao final do primeiro ano de curso (R1). A conclusão foi inquietante. Ao iniciar, apenas 4,3% apresentavam quadros depressivos. Mas, após concluir o R1, 29,8% 12 estavam acometidos pela depressão.
Um estudo publicado na Revista Brasileira de Educação Médica (2010) revelou dados alarmantes: 32,1% dos médicos residentes brasileiros apresentavam exaustão emocional; 11% despersonalização (entendida como a mudança nas características intrínsecas da personalidade do indivíduo); e 33,9%, reduzida sensação de realização pessoal.
Como caracterizar o assédio moral?
O assédio moral estará configurado quando preencher os seguintes critérios: realização de ato abusivo ou agressivo; a repetição da referida conduta, não necessariamente por meio do mesmo ato; e a intenção do agente ativo de causar dano ao assediado.
Exigências profissionais, críticas construtivas e avaliações promovidas de forma não humilhante, não são enquadradas como assédio. Um comportamento isolado pode não caracterizar o assédio moral, mas ainda assim pode ensejar dano moral. As origens do assédio são diversas e vão desde as más condições de trabalho ao trabalho em condição insalubre. Tais condições não configuram assédio moral, mas devem ser avaliados sob risco de enquadramento em legislação trabalhista.
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Dentre as muitas facetas do ato estão o tratamento diferenciado quando comparado aos demais colegas, agressões verbais, difamação (tentativa de criar uma imagem inadequada na esfera pessoal e profissional), limitação e controle, desqualificação, ocultação de informação, ridicularização, intimidação e exclusão. Dois pilares: o abuso de poder e a manipulação perversa estão diretamente ligados ao assédio.
O abuso de poder é mais direto e fácil de ser identificado e rejeitado. Caracteriza-se por constantes humilhações e constrangimentos por parte do superior, que se desdobram em repercussões negativas na identidade da pessoa assediada. Distorcendo sua noção de dignidade e infringindo seus direitos fundamentais.
Já a manipulação perversa é de mais custosa detecção, diante do fato de se iniciar de forma silenciosa, através de meios nem sempre claramente percebidos, como: comunicação hostil, isolamento, situações vexatórias e as humilhações. De tal forma a manipulação perversa objetiva arruinar paulatinamente a autoimagem da vítima, de forma que, ao longo deste processo depredador, ela mesma se sinta culpada e merecedora das agressões.
A médica Margarida Barreto tratou o assunto da violência no trabalho como um fator de agravamento da saúde. O assunto teve maior notabilidade a partir do seu trabalho publicado no livro: Violência, saúde, trabalho: uma jornada de humilhações. Os termos psicoterror, coação, manipulação perversa ou assédio moral passaram então a ser utilizados para descrever a s situação. Desde esse tempo, floresce a preocupação pelo combate ao assédio moral na área médica no Brasil, paralelo à tendência mundial marcada de aumento no debate e atenção pela problemática envolta.
Os comportamentos descritos como abusivos são diversos. Ameaçar ao status profissional com intimidações, humilhações, intentar contra a vida pessoal gerando boatos e ataques pessoais. Excluir o funcionário ou tentar que seja isolado, sobrecarregar com monitorização excessiva e acionar medidas organizacionais de forma a incidir em manipulação perversa como forma de aumentar o seu poder sobre a vítima.
Existe justificativa para o assédio?
Não!
Porém a convicção de que os maus tratos infringidos aos principiantes na carreira podem ser úteis em sua formação não fundamenta, tampouco isenta de culpa o abusador. Portanto a justificativa para tal, seria que o benefício de transformar aprendizes em profissionais menos sensíveis as angústias dos pacientes estariam preparando-os melhor para a vida profissional.
Na mesma linha de raciocínio existem os que utilizam o conceito de resiliência erroneamente. Tendem a manipular os subordinados e confundir os conceitos de resiliência com submissão. De certa forma é folclórico ver como indivíduos cronologicamente adultos se sujeitam a situações de aviltamento, repetidas vezes, passando por eventos vexatórios na presença de colegas. À vista disso temos que o comportamento do subalterno concorre para inalteração desse ciclo truculento.
Uma conjuntura propícia ao cenário de assédio é descrita como ambientes de ensino e de trabalho em que os membros têm delimitação incoerente de seus papéis, o conteúdo programático e os objetivos mal estabelecidos com o programa de treinamento, enraízam as bases da desmotivação.
De modo infeliz, a atmosfera criada acaba por transmitir uma cultura primitiva e ríspida, altamente prejudicial ao relacionamento entre médicos preceptores e residentes. Os prejuízos na aprendizagem podem ser brutais nesse clima de ensino de insensibilidade, desprezo e distanciamento.
Consequências para a vítima
Existe toda uma programação de vida que o médico realiza em sua carreira para dar lugar a sua especialização e que não é valorizado por seus pares em superioridade hierárquica. Além das sequelas profissionais o assediado pode ter repercussões diversas que afligem sua saúde e a segurança de outrem que estejam diretamente sob sua responsabilidade, ou seja, acarreta riscos à segurança do paciente. As consequências transbordam e atingem a vida pessoal, favorecendo a perda de suporte familiar, tido como poderoso fator protetor psicossocial. As queixas relacionadas a saúde são de ordem psicossomática ao desenvolvimento de doenças mentais, como a depressão, por exemplo. Vejamos o que afirmam Trout et at. (2011):
“Residência é estressante. O impacto das tensões enfrentadas por residentes tem sido bem documentado, com vários estudos que mostram altos níveis de depressão e ansiedade entre os residentes e piora de humor ao longo da residência”.
No mesmo sentido o Núcleo de Assistência e Pesquisa em Residência Médica (NAPREME), controlado pelo departamento de psiquiatria constatou o seguinte:
O período de transição aluno-médico, a responsabilidade profissional, o isolamento social, a fadiga, a privação do sono, a sobrecarga de trabalho, o pavor de cometer erros e outros fatores inerentes ao treinamento estão associados a diversas expressões psicológicas, psicopatológicas e comportamentais que incluem: estados depressivos com ideação suicida, consumo excessivo de álcool, adição a drogas, raiva crônica e o desenvolvimento de um amargo ceticismo e um irônico humor negro
Mesmo que algumas características favoreçam o assédio, temos que todos os profissionais estão sujeitos. Alguns fatores de risco auxiliam a caracterizar a vulnerabilidade ao assédio como fatores relacionados a estruturas organizacionais inadequadas, incertezas, controle excessivo de atividades, jornadas excessivas. É importante que a vítima seja ouvida e perceba que está acolhida e protegida.
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Como comprovar?
A prova de assédio deve ser bem produzida pela vítima, o que nem sempre é algo simples, posto que o assédio ocorre, frequentemente, de forma clandestina, muitas vezes sem a presença de testemunhas. A prova testemunhal costuma ser mais fácil de ser arrecadada, tendo em vista que o trabalho do médico ou residência médica é exercido na presença de outros profissionais da saúde, bem como de pacientes. É fundamental que o assediado procure fazer o registro das testemunhas.
A dificuldade reside no fato de que estas também podem estar sofrendo assédio pela mesma figura hierarquicamente superior e estarem amedrontadas a prestar declarações aos órgãos legais devido ao constrangimento, ausência de dignidade na relação, medo de retaliação profissional. Entretanto, nem todos sabem, mas, salvo exceções previstas em lei, a testemunha intimada pela autoridade policial não pode deixar de comparecer para prestar depoimento.
Ao prestar depoimento de maneira voluntária ou por força de coerção, a testemunha tem o compromisso de falar a verdade, sob a pena de responder processo criminal por falso testemunho, como está exposto no artigo 342 do Código Penal Brasileiro:
Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Quando apenas as alegações da vítima e testemunhas forem insuficientes para elaborar a culpabilidade do assediador, outros dispositivos têm concretizado uma nova força na produção de provas. Provas lícitas contidas em vídeos e áudios podem ser utilizados e juntados nos procedimentos de investigações criminais com garantia da lei, desde que realizado por um dos interlocutores da gravação. Isso significa que prova gravada por terceiros não
pode ser utilizada como argumento de direito de defesa da vítima.
Além da prova testemunhal, é possível que existam provas documentais, como por exemplo, conversas no WhatsApp ou postagens em redes socais. Ao deparar-se com isto, a vítima deve printar e ir até um cartório para que seja feita uma ata notarial, que consiste em uma manifestação do tabelião de que determinada narrativa é verdadeira. Com isso, o print passa a ter validade jurídica para ser utilizado como prova em eventual processo.
Em caso de gravações por circuitos fechados de televisão em ambientes privados, é necessário que a vítima de abuso, assédio moral ou ameaças solicite à autoridade legal o pedido das gravações para instruir o expediente que busque a culpabilidade do autor.
Como agir? Como denunciar?
Tão importante quanto identificar abusos é ter a quem recorrer nesse momento em que comumente o assediado se sente sozinho em uma luta aparentemente invencível. Importantes barreiras se impõem para dificultar as denúncias. Como os assediados, constantemente, estão em posição hierárquica de subordinação ao assediador (conhecido pela doutrina jurídica como assédio vertical), o medo de represálias é limitador ao ato de denunciar o episódio.
Adicionalmente a depreciação das autoridades que tinham o dever de apurar, associado a vergonha perante colegas e o medo de que não acreditem nos fatos relatados.
É preocupante que temores de retaliação e descrédito das instituições sejam fatores que perpetuem o assédio moral, uma vez que, institucionalizam a prática. Um obstáculo importante para que o assédio moral seja denunciado, como mencionado anteriormente, consiste no pensamento difuso de que sofrer assédio seria algo necessário para que um indivíduo se torne médico, o que chama a atenção para a necessidade de educação quanto ao tema.
Ademais, muitas vezes, o assediado não tem conhecimento de que sofreu assédio, embora perceba a situação como humilhante e degradante. Isso se deve ao desconhecimento sobre o que constitui um comportamento abusivo e que este é inaceitável. Não saber como denunciá-lo e a qual recurso recorrer (se existir) contribui para que não seja reportado. Mesmo quando reportado a supervisores, estes também não sabem como lidar com esse problema.
Mais da autora: Como o relatório médico contribui para a avaliação do médico perito?
Para o adequado e correto exercício profissional, acadêmicos de Medicina e residentes devem exigir o respeito de seus direitos e garantias fundamentais, visando que as condutas inaceitáveis do cotidiano nunca extrapolem critérios éticos, legais ou sociais. Quando o acadêmico ou residente se sentir assediado: o primeiro mecanismo indicado deve ser a leitura da gravidade do fato. Seria um fato ou ato a ser discutido na esfera administrativa, cível ou criminal?
Primeiro ponto: o assédio moral não deve ser tolerado, é covarde, e deve ser severamente denunciado. O comportamento jurídico atual protege a vítima que o denuncia, porque o ato de assediar confronta diretamente um dos princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988, qual seja, a dignidade da pessoa humana. Ingo Wolfgang Sarlet (2008) afirma que a dignidade da pessoa humana consiste em:
Qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Como a residência médica tem legislação específica e não se submete às regras trabalhistas, primordialmente deve-se definir o critério pela gravidade do caso, comunicando o crime à autoridade policial, para imediata apuração e realizar boletim de ocorrência em distrito policial ou mesmo buscar a instauração de inquérito criminal, o que não infere em presunção de culpa ou julgamento antecipado dos fatos apresentados contra o transgressor. Se possível, a situação de assédio deve ser comunicada não muito distante do momento em que ocorreu, visando à busca da verdade real. A abertura de boletim de ocorrência nos casos de calúnia, injúria ou difamação seja realizada pelo sítio eletrônico da instituição.
A situação de assédio pode ser levada ao Ministério Público para que se instaure procedimento a fim de apurar a denúncia apresentada; apurar o autor e determinar as extensões de responsabilidades por todos que respondem pela estrutura de formação do médico residente.
Na esfera cível é possível propor uma ação de Indenização por Danos Morais contra o agressor. Este tipo de processo visa a reparação do mal sofrido através de indenização pecuniária. A Constituição Federal de 1988 prevê esta possibilidade no artigo 5º, incisos V e X, vejamos:
- V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
- X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
Outro fundamento legal para a reparabilidade do dano sofrido encontra-se no Código Civil Brasileiro, nos artigos 186 e 927:
- Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
- Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Ademais, além do agressor direto, é possível arrolar como réu a instituição de ensino ou o hospital que foi o cenário do problema. É o que evidencia o artigo 932, inciso III do mesmo Código:
- Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
- III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;
Este dispositivo expõe, portanto, que o hospital-escola deve conhecer o que se passa nas suas dependências e também coibir má práticas e condutas antijurídicas. Sendo assim, tanto o assedior quanto o hospital arcarão com uma possível indenização.
Entidades médicas como a Associação Nacional dos Médicos Residentes (ANMR) estão em constante luta para melhorar as condições de trabalho desses profissionais. O presidente da Associação Catarinense de Médicos Residentes, Dr. Maikon Madeira, escreveu a pedido contando sobre como tem sido a luta das entidades nesse sentido:
Nós da Associação Nacional dos Médicos Residentes e eu como Presidente da Associação Catarinense dos Médicos residentes viajamos por todo o Brasil para defender a nossa classe. Hoje se você sofrer um acidente e ir até um hospital SUS terá uma chance muito grande de ser atendido por um médico residente. Somos 40.000 médicos que estão passando por uma transição em suas vidas, em busca de conhecimento para melhor tratar os pacientes. Precisamos da união e força para acabar com o assédio sobre o Médico Residente. Queremos respeito, precisamos disso em 2020? Médico Residente, vocês não estão sozinhos nessa batalha. Contem conosco.
Quem deve apurar a denúncia?
As apurações de assédio poderão ser apuradas pela justiça do trabalho ou justiça comum, as consequências sofridas pelo assediado ditarão o caminho. Antes de iniciar com esse intercurso jurídico existe ainda o caminho administrativo. Administrativamente temos órgãos que poderão ser procurados pelo médico residente, são eles a Comissão de Residência Médica (Coreme), a Comissão Estadual de Residência Médica (Cerem), a Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) e o próprio Conselho Regional de Medicina (CRM).
A Coreme é concebida para fornecer suporte mediante denúncia formalizada por escrito e protocolizada diretamente ao secretário da comissão. Composta por médico supervisor e coordenador esse órgão é de estrutura interna e o médico residente poderá se sentir exposto, com medo de represálias e até mesmo ter um agravamento do transtorno enfrentado quando a estrutura facilitar uma esfera de represália. O Cerem interligado a CNRM é uma instituição que tem canal direto de denúncia e pode apurar os fatos ligados ao assédio. Importante, mas não obrigatório, que seja realizado uma peça escrita para documentar de forma lógica os fatos ocorridos e tenha a identificação do denunciante.
Interligado ao abuso moral o abuso de poder é uma outra forma do assediador agir. Mediante comprovação do ato as ações praticadas quando existir o abuso de poder poderão ser anuladas.
Por fim…
O fortalecimento dos mecanismos de resiliência psíquica através do atendimento psicológico, tanto para o professor como para o aluno, auxiliaria o médico a suportar as tensões da função, sem que necessitasse transbordar o estresse para quem certamente espera ser amparado pela experiência do mestre.
É indispensável estabelecer a diferença entre confrontos ocasionais, estratégias abertas e francas, comunicação sincera, dentre outras, e as situações de assédio moral, ou seja, comportamento de boicote, estratégias equivocadas e comunicação indireta. Há, ainda, outras nuances a considerar, por exemplo quando o indivíduo imagina estar sendo assediado ou simula situações para obter uma indenização.
Ainda que intoleráveis, os abusos persistem, em parte, porque residentes e estudantes não trazem à tona tais assuntos, preferindo assimilá-los. Combate, comunicação, humanização, instalação de canais de comunicação entre os seus membros de maneira igualitária e respeitosa pode ser uma alternativa viável.
Implantação da “cultura de aprendizado”, em vez de punição, promoção de relações interpessoais de qualidade no ambiente de ensino e trabalho, se sobrepondo àquelas que têm efeito deletério sobre o profissional em formação, supervisão de qualidade, o suporte de grupo e ter um retorno construtivo sobre o trabalho realizado, por meio de feedback periódico, despeito da posição que possuem, habilidades ruins de liderança e de comunicação interpessoal.
Muitos supervisores não sabem como proceder ou não sabem identificar situações de assédio quando se deparam com uma ou quando recebem uma denúncia. Além disso, muitos daqueles que adotam a prática de assédio o fazem muitas vezes sem se dar conta de que seus comportamentos são inapropriados.
Devem ser criadas instâncias para apuração de denúncias e prevenção de novos episódios, como comitês específicos para isso. Desejavelmente deveria ser desenvolvido um protocolo específico para recebimento e apuração de queixas que diminua o medo de retaliação de quem realizá-las à semelhança do que acontece nos casos de apuração de tortura com o Protocolo de Istambul. As penalidades devem ser bem definidas e padronizadas.
O assédio deve ser suprimido pelos supervisores e instituições de ensino. Os conhecimentos éticos adquiridos diariamente na prática médica fazem parte do aprendizado. Uma vez que sejamos coniventes com o assédio aceita-se que essa prática é normal e os profissionais em formação passam a incorporar o mal comportamento em sua prática profissional futura.
Cabe ressaltar que as próprias instituições são grandes beneficiárias de medidas que promovem um ambiente saudável de ensino e trabalho. Os frutos colhidos pelas instituições que aplicarem tais medidas podem ir desde redução de custos decorrentes de erros médicos até a prevenção da perda de bons funcionários e do abandono de programas de residência médica.
Com colaboração de:
- Yasmin A. Folha Machado: Advogada, especialista em Direito Médico pela UNICURITIBA, especialista em Direito da Medicina pela Faculdade de Coimbra e Mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUCPR. Instagram: @yasmin_folha
- Maikon Madeira: Médico, Cirurgião Geral, presidente da Associação Catarinense de Médicos Residentes. Instagram: @maikonmadeira
Referências bibliográficas:
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- Assédio moral na formação médica: conscientizar para combater. Organização de Edoardo Filippo de Queiroz Vattimo e Elio Belfiore. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, 2019. 88p. [on line].[Acessado em: 25 nov 2019]. Disponível:http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Publicacoes&acao=detalhes&cod_publicacao=102
- BARRETO M. Violência, saúde, trabalho: Uma jornada de humilhações. São Paulo: Editora PUCSP; 2003
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- MAEDA, Patrícia. Assédio moral no trabalho: uma abordagem tridimensional. O Que os médicos precisam saber sobre seus direitos / organização Sindicato dos Médicos de São Paulo. São Paulo : Sindicato dos Médicos de São Paulo, 2016.
- DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTR, 2013.
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- SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. 6.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 63.
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