A síndrome hiperglicêmica hiperosmolar não cetótica (SHHNC), ou Estado Hiperosmolar Hiperglicêmico (EHH) é uma das emergências metabólicas mais graves associadas ao diabetes mellitus, caracterizada por mortalidade elevada, especialmente em pacientes idosos, frágeis e com múltiplas comorbidades. Embora seja menos frequente do que a cetoacidose diabética (CAD), sua letalidade chega a ser até dez vezes maior em alguns estudos, representando um desafio clínico considerável. Parte dessa gravidade se explica pela própria população acometida: pessoas com longa evolução de diabetes tipo 2, muitas vezes sem diagnóstico prévio, em uso de fármacos que agravam a resistência insulínica, com infecções ou outras doenças intercorrentes, e submetidas a condições de desidratação prolongada.
Do ponto de vista fisiopatológico, a SHHNC é consequência de um déficit insulínico relativo. Ou seja, a quantidade de insulina endógena ainda é suficiente para inibir a lipólise e a formação de corpos cetônicos, mas não consegue controlar a glicemia, que se eleva de forma extrema. Como resultado, ocorre uma diurese osmótica de grandes proporções, acompanhada de perdas progressivas de água e eletrólitos, com hipovolemia, hiperosmolaridade plasmática e repercussões neurológicas variando desde uma leve letargia ao coma. A ausência de cetose importante, que costuma ser um marcador clínico da CAD, contribui para o diagnóstico diferencial, mas também para que o quadro seja, muitas vezes, subestimado até a instalação de sintomas neurológicos graves.
Foi nesse cenário que a Sociedade Brasileira de Diabetes atualizou, em 2025, suas recomendações para diagnóstico e manejo da SHHNC. O documento incorpora evidências recentes e adapta protocolos internacionais para a realidade brasileira, enfatizando a importância do tratamento rápido, multiprofissional e estruturado em etapas. Pela importância do documento, trazemos uma revisão e síntese dos principais pontos abordados pela nova diretriz.
Diagnóstico
A diretriz da SBD 2025 reforça que a SHHNC deve ser diagnosticada não apenas pela presença de hiperglicemia acentuada, mas pela associação com osmolaridade plasmática elevada e alteração do estado mental. O valor de corte empregado para a glicemia plasmática é de 600 mg/dl. O marcador central é a osmolaridade efetiva, que geralmente se encontra acima de 320 mOsm/kg, refletindo a intensidade da desidratação celular.
Outro critério essencial é a ausência de acidose metabólica significativa. O pH arterial, em regra, é superior a 7,30, e o bicarbonato sérico se mantém acima de 18 mEq/L. A cetonúria pode estar ausente ou ser discreta, mas nunca atinge a magnitude observada na CAD. Essa combinação – hiperglicemia extrema, hiperosmolaridade acentuada, ausência de acidose relevante e alteração do nível de consciência – é o que define a SHHNC.
Logo, apesar de ressaltar que ainda não exista uma definição precisa na literatura, os critérios diagnósticos propostos pela SBD 2025 são:
- Glicemia ≥ 600 mg/dL;
- Osmolalidade EFETIVA ≥ 320 mOsm/L;
- Ausência de cetoacidose (pH ≥ 7,3, BIC ≥ 15 mmol/l, ausência de hipercetonemia significativa (< 3 mmol/L).
A diretriz ressalta ainda que os sintomas neurológicos são proporcionais ao grau de hiperosmolaridade. Assim, pacientes podem apresentar desde confusão mental e sonolência até convulsões ou coma. Esse achado deve ser valorizado como um sinal de alerta. Além disso, o reconhecimento precoce do fator desencadeante é parte integrante da abordagem diagnóstica. Infecções, eventos cardiovasculares agudos como acidente vascular cerebral ou IAM, embolia pulmonar, pancreatite e o uso de medicamentos como corticoides são causas comuns. Vale lembrar que a desidratação intensa costuma acontecer devido a situações onde há privação ao acesso à hidratação.
Monitoramento contínuo de glicose no manejo da hipoglicemia pós-bariátrica
Manejo
O tratamento da SHHNC deve ser conduzido em ambiente hospitalar, preferencialmente em unidade de terapia intensiva, e estruturado em etapas bem definidas. O primeiro passo é a fluidoterapia. A reposição de líquidos é considerada a medida mais importante e prioritária para reduzir a mortalidade. Recomenda-se iniciar com solução fisiológica a 0,9% em volumes de 15 a 20 ml/kg na primeira hora, avaliando resposta clínica e hemodinâmica. A partir desse ponto, os ajustes devem ser individualizados conforme a osmolaridade sérica e o sódio corrigido. Em idosos e pacientes com insuficiência cardíaca ou doença renal crônica, essa reposição deve ser cautelosa, com balanço hídrico rigoroso e monitorização hemodinâmica frequente.
Após o início da reidratação, a atenção se volta para a correção dos eletrólitos, em especial do potássio. A hipocalemia é uma complicação frequente, agravada pelo início da insulinoterapia, que promove o influxo intracelular do íon. A diretriz recomenda que, se o potássio sérico estiver abaixo de 3,3 mEq/L, a correção seja iniciada antes da insulina. Entre 3,3 e 5,2 mEq/L, o potássio deve ser reposto concomitantemente à insulina, e, se estiver acima de 5,2 mEq/L, a suplementação pode ser adiada, mas com monitorização frequente, a cada 2 a 4 horas. Essa recomendação, reforçada com ênfase no documento, é considerada determinante para a segurança do tratamento.
Somente após reidratação inicial, correção do potássio e estabilização da glicemia através da reidratação é que se deve iniciar a insulinoterapia. Este fator é importante porque, devido aos níveis de depleção volêmica, apenas a hidratação pode já ser suficiente para uma queda intensa nos valores de glicemia. É preciso respeitar este passo para que não haja variações muito grandes na osmolalidade sérica.
Uma vez estabilizada a glicemia e checado o potássio, o protocolo recomendado é a infusão intravenosa de insulina, podendo ser feita através de uma infusão contínua de 0,05 U/kg/h. O objetivo inicial é reduzir a glicemia gradualmente, em torno de 50 a 70 mg/dl por hora, até a glicemia atingir níveis entre 250 e 300 mg/dl. Nesse ponto, a diretriz recomenda reduzir a taxa de infusão de insulina e associar soluções glicosadas a 5% ou 10%, com o objetivo de evitar hipoglicemia e, sobretudo, a queda rápida da osmolaridade plasmática, que pode desencadear edema cerebral. A hiperglicemia normalmente é resolvida após 8 a 10 horas de tratamento e devemos almejar uma queda entre 90 e 120 mg/dl/h.
A correção da osmolaridade também deve ser sempre lenta e controlada. O guideline destaca que quedas acintosas estão associadas a maior risco de complicações neurológicas. Por isso, a monitorização seriada da osmolaridade é mandatória ao longo do tratamento, com um alvo de queda entre 3 a 8 mOsm/kg/h.
Quando a glicemia estiver estabilizada e o paciente apresentar recuperação clínica, com estado mental normalizado, estabilidade hemodinâmica e possibilidade de reinício da alimentação oral, deve-se programar a transição para insulina subcutânea. A SBD recomenda fortemente a sobreposição entre as vias endovenosa e subcutânea, com administração da insulina basal de 1 a 2 horas antes da suspensão da infusão venosa, para prevenir hiperglicemia de rebote. O esquema basal-bolus é preferido, e os análogos de ação prolongada são valorizados por sua previsibilidade e menor risco de hipoglicemia. Confira abaixo os critérios de resolução pontuados pela SBD 2025:
Critérios de resolução da SHHNC
- Paciente alerta, se alimentando e com normalização do estado mental;
- Osmolalidade plasmática abaixo de 315 mOsmol/L;
- Glicemia abaixo de < 250-300 mg/dL;
- Correção das alterações hidroeletrolíticas e ausência de acidose metabólica.
O manejo só é considerado completo quando, além da correção metabólica, o fator precipitante também for tratado. Por isso, a diretriz reforça a necessidade de investigação ativa e precoce de infecções, doenças cardiovasculares agudas ou uso inadequado de medicamentos. Sem essa abordagem paralela, há alto risco de recorrência do quadro e de manutenção da mortalidade elevada.
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Como esta nova diretriz pode influenciar a nossa prática médica
A atualização da SBD 2025 traz uma visão mais clara e estruturada sobre a SHHNC, permitindo aos especialistas no Brasil um manejo mais seguro e efetivo dessa emergência metabólica. O documento destaca que o diagnóstico não deve ser firmado apenas pela glicemia, mas pelo conjunto formado pela hiperosmolaridade e ausência de acidose significativa, o que ajuda a evitar erros clínicos e atrasos no tratamento. Vale lembrar, contudo, que em até 30% dos casos pode haver uma sobreposição das condições.
Na prática diária, talvez o ponto mais importante seja a reafirmação da fluidoterapia como medida central, associada ao cuidado rigoroso com a reposição de potássio antes do início da insulina. Esse detalhe, que muitas vezes é negligenciado em atendimentos de emergência, pode significar a diferença entre a reversão segura do quadro e a ocorrência de complicações associadas ao tratamento.
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