Podemos usar metformina no diabetes gestacional?
Até o momento, a SBD e a ADA não recomendam a metformina como primeira escolha para tratamento do diabetes mellitus gestacional.
Não é novidade que a metformina na gestação é um dos temas mais discutidos dentro da área do diabetes na gestação, seja no diabetes mellitus tipo 2 (DM2) em gestantes, seja no diabetes mellitus gestacional (DMG). Isso porque trata-se de uma medicação amplamente disponível, de baixo custo e de uso mais simples do que a insulina, tratamento medicamentoso de primeira escolha hoje.
As evidências sobre o uso da metformina na gestação vem aumentando nos últimos anos. O famoso MiG trial (Metformin in Gestational Diabetes), publicado em 2008 no NEJM, é talvez o principal estudo sobre o assunto. Nesse estudo, que incluiu 751 gestantes com DMG, foi observado uma redução em 32% no desfecho primário composto por hipoglicemia neonatal, dificuldade respiratória, necessidade de fototerapia, índice de Apgar de 5 min < 7 e parto prematuro no grupo metformina, apesar de que 46,3% das gestantes no grupo metformina precisaram utilizar insulina ao longo da gestação. Numa metanálise publicada em 2019 com dados de 17 ensaios clínicos randomizados (RCTs), totalizando 2.828 gestantes com DMG, a metformina quando comparada à insulina reduziu o risco de hipertensão gestacional (p = 0,03; RR 0,64; IC 95% 0,44 a 0,95); macrossomia (p = 0,01; RR 0,63; IC 95% 0,45 a 0,90); hipoglicemia neonatal (p = 0,001; RR 0,72; IC 95% 0,59 a 0,88) e feto GIG (p = 0,04; RR 0,82; IC 95% 0.68 a 0.99), além da admissão em UTI neonatal (p = 0.01; RR 0,74; IC 95% 0,59 a 0,88), sem aumentar risco de feto PIG (p = 0,95; RR 0,99; IC 95% 0,69 a 1,42) ou parto prematuro (p = 0,11; RR 1.28; IC 95% 0.95 a 1.73).
Contudo, nem todas as evidências são positivas. O MiG Tofu, estudo de seguimento dos filhos nascidos e acompanhados no estudo MiG, verificou maior risco de obesidade em filhos de mães expostas à metformina. Além disso, o Mity trial, publicado em 2020 no The Lancet, mostrou que a metformina em gestantes com DM2 não trouxe benefícios em termos de desfechos neonatais (o endpoint primário do estudo). Apesar de observar-se uma redução na proporção de fetos GIG, peso materno e dose total diária de insulina, tais diferenças foram pequenas e também houve aumento na proporção de fetos pequenos para idade gestacional (PIG), o que torna questionável o papel da metformina na gestação.
Saiba mais: ADA 2023: O papel da metformina na gestação – quais as evidências mais atuais?
Até o momento, a Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) e a American Diabetes Association (ADA) não recomendam a metformina como primeira escolha para tratamento do diabetes mellitus gestacional. Hoje, a SBD recomenda seu uso tanto no DM2 como no DMG apenas em gestantes com necessidade de altas doses de insulina (dose total diária > 1,5U/kg/d) ou feto GIG (acima do P90) ou ganho de peso materno excessivo, desde que o feto esteja acima do P50 e a gestante não tenha problemas renais. A ADA ainda acrescenta como contraindicação a presença de doenças hipertensivas (HAS ou pré-eclâmpsia) durante a gestação.
Recentemente foi publicado um artigo no JAMA sobre uma abordagem diferente do que costumamos observar nos estudos e guidelines, o que chamou a atenção. No momento, os guidelines recomendam, com baixo nível de evidência, que devemos iniciar o tratamento do DMG com mudanças do estilo de vida (dieta e atividade física) e, apenas se falha na MEV após 1-2 semanas, iniciar o tratamento medicamentoso. Contudo, os autores do estudo irlandês buscaram responder se o início precoce da metformina, logo ao diagnóstico do DMG, poderia impactar num melhor controle glicêmico ao final da gestação e reduzir desfechos.
A justificativa dos autores é que de fato, o “timing” ótimo para o tratamento ainda é desconhecido e, a depender da semana em que for feito o diagnóstico do DMG, é possível que estejamos perdendo tempo e expondo o feto à períodos maiores de hiperglicemia do que o desejado.
Metformina no diabetes gestacionalO estudo
O estudo irlandês foi um ensaio clínico randomizado, duplo cego, placebo controlado, realizado em dois centros na Irlanda. Após o cálculo amostral final, foram randomizadas 535 gestantes com DMG, diagnosticadas a partir do critério da OMS de 2013, para iniciar o tratamento precoce com metformina, escalonada até 2,5 mg/d (ou máxima dose tolerada) vs. placebo mais tratamento padrão (mudança de estilo de vida, seguida pelo início de insulina). Caso a gestante apresentasse 2 glicemias alteradas no período (seguimento a cada 2 a 4 semanas), independentemente do grupo de randomização, era iniciada a terapia com insulina, conforme os guidelines irlandeses.
A média de idade das gestantes foi de 34 anos (18 a 50 anos), sendo que a proporção de gestantes com IMC > 30 kg/m2 ou com antecedente pessoal de DMG foi balanceada entre os grupos. Foram excluídas gestações gemelares
O desfecho primário selecionado foi um composto de duas variáveis: necessidade de iníciar insulina e proporção de gestantes que atingiram nível de glicemia de jejum maior que 92 mg/dL nas semanas 32 ou 38.
Metformina não reduziu o desfecho primário
Não houve diferença quanto à necessidade de início de insulina ou a proporção de gestantes atingindo glicemias de jejum menores que 92 mg/dL nas semanas 32 ou 38. No grupo metformina, 56,8% atingiram o desfecho composto primário, comparado a 63,7% no grupo placebo (RR 0,89; 0,78 – 1,02; IC 95%; p = 0.13).
Outros resultados
Apesar de não haver diferenças no desfecho primário, algumas variáveis selecionadas para análise secundária tiveram benefício, como o peso materno (-1,2 kg) e controle glicêmico auto-reportado, baseado em aferições de glicemia capilar (vale lembrar que o desfecho primário utilizou apenas glicemia de jejum como parâmetro), apesar da diferença ser clinicamente discreta (semana 32, no almoço: – 4 mg/dL; semana 38, no pós café, -6 mg/dL e pós jantar, – 10 mg/dL).
A necessidade de insulina foi analisada também de forma independente como um dos desfechos secundários. Houve uma menor necessidade de insulina no grupo metformina (38,4%) vs. grupo placebo (51,1%; RR 0,75; IC 95%; p = 0,004), sendo que a média de dose utilizada no grupo metformina antes do parto foi 20,4U vs. 24,2U no grupo placebo, que representa 0,2 U/kg/d vs. 0,3 u/kg/d.
Contudo, outras variáveis maternas analisadas como idade gestacional ao parto, taxa de prematuridade, hipertensão, pré-eclâmpsia, hemorragia periparto, indução de parto ou cesárea foram iguais entre os grupos.
Já entre os desfechos secundários fetais, os filhos nascidos de mães que utilizaram metformina tiveram um peso médio menor, com menor proporção de fetos GIG e macrossômicos (> 4 kg), porém às custas de aumento de fetos PIG (mesmo achado visto no Mity trial em gestantes com DM2). Não houve diferenças quanto a necessidade de UTI neonatal, icterícia requerendo fototerapia, estresse respiratório, hipoglicemia neonatal ou apgar 5 minutos menor do que 7.
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Evidência a favor ou contra a metformina?
Esse estudo foi interessante por utilizar uma abordagem diferente, propondo tratamento imediatamente após o diagnóstico com metformina, para avaliar o impacto na redução da glicemia ao final da gestação e na necessidade do uso de insulina. O desfecho principal foi negativo, que nos faz pensar duas coisas: primeiro, se o uso da metformina não muda a necessidade de iniciar insulina ao longo da gestação, ela pode ser redundante a menos que se prove útil em algum desfecho duro, o que ainda é controverso, já que apesar de reduzir fetos GIG, aumenta a proporção de fetos PIG; segundo, possivelmente não houve diferença clinicamente significativa quanto ao controle glicêmico. Vale destacar que os desfechos secundários analisados servem apenas para levantar hipóteses, visto que o estudo não tinha poder suficiente para demonstrar diferenças significativas entre os grupos.
Portanto, parece que mais um estudo aponta para que a metformina não seja considerada primeira opção no tratamento do DMG e não devemos, pelo menos à luz das evidências e guidelines atuais, recomendar seu uso imediatamente após o diagnóstico do DMG.
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