O diabetes pré-existente na gestação representa um dos cenários clínicos mais complexos da endocrinologia aplicada à saúde reprodutiva. Engloba tanto o diabetes tipo 1 (DM1) quanto o tipo 2 (DM2) diagnosticados antes da concepção, e se diferencia do diabetes gestacional por sua fisiopatologia, curso clínico e gravidade dos desfechos. O número de gestantes com DM pré-gestação vem crescendo de maneira expressiva, especialmente devido à pandemia de obesidade e maior incidência de DM2 em mulheres jovens. Estima-se que o DM2 supere o DM1 em muitas populações gestantes, trazendo consigo desafios específicos, como resistência insulínica acentuada, múltiplas comorbidades e maior vulnerabilidade social.
Os riscos maternos e fetais associados ao DM pré gestação são extensos: aumento da frequência de malformações congênitas (sobretudo em SNC e sistema cardiovascular), pré-eclâmpsia, parto prematuro, macrossomia fetal, distocia de ombro, hipoglicemia neonatal, aumento da natimortalidade e complicações metabólicas a longo prazo na prole. Esses riscos guardam relação direta com os níveis glicêmicos no momento da concepção e com a qualidade do controle metabólico durante a gestação.
Frente a esse cenário, a Endocrine Society e a European Society of Endocrinology publicaram, em 2025, um guideline internacional conjunto com 10 recomendações clínicas formais baseadas na metodologia GRADE. A proposta do documento foi oferecer uma atualização com base nas melhores evidências atuais para o manejo do DM pré gestação em todas as fases do ciclo reprodutivo — pré-concepção, gestação e puerpério —, com ênfase em decisões centradas na paciente, viabilidade prática e impacto sobre desfechos clínicos e equidade em saúde. A nova diretriz não traz exatamente recomendações sobre todo o manejo em si, mas foca em pontos chave e de dúvidas frequentes para especialistas sobre o tema. Sem mais delongas, vamos conhecer as 10 recomendações trazidas no documento.
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As 10 novas recomendações da Endocrine Society
- Triagem sistemática da intenção reprodutiva
O primeiro ponto do guideline é a recomendação de que a intenção reprodutiva seja avaliada rotineiramente em mulheres com diabetes em idade fértil, independentemente do contexto clínico. Isso inclui consultas de atenção primária, endocrinologia, ginecologia e saúde da mulher. A pergunta-chave é direta: “você deseja engravidar nos próximos meses?”. A proposta é antecipar intervenções e não reagir apenas após a concepção, reduzindo a elevada taxa de gestações não planejadas, particularmente em mulheres com DM2, nas quais a obesidade, o uso de fármacos teratogênicos e a hiperglicemia crônica não controlada podem comprometer precocemente o desenvolvimento embrionário. A avaliação da intenção reprodutiva também favorece o direcionamento adequado para contracepção ou cuidado pré-concepcional estruturado.
- Oferecer contracepção de forma não coercitiva
Mulheres com diabetes que não desejam engravidar devem ter acesso a métodos contraceptivos eficazes, seguros e compatíveis com seu perfil clínico, em uma abordagem baseada em decisão compartilhada e livre de coerção. O uso de contraceptivos de longa ação reversíveis (LARC) — como o DIU e implantes — é encorajado, especialmente em pacientes com baixo acesso a cuidados regulares. Em contrapartida, a escolha de contraceptivos hormonais combinados exige atenção às contra-indicações (ex: nefropatia diabética, hipertensão grave, história de eventos trombóticos). A recomendação se apoia em estudos que demonstram que mulheres com DM que usam contracepção eficaz têm menores taxas de gestações imprevistas, melhores níveis de HbA1c no primeiro trimestre e menor incidência de malformações congênitas — um reflexo direto da maior possibilidade de planejamento e controle metabólico antes da concepção.
- Suspensão de agonistas de GLP-1 antes da concepção
O uso crescente de agonistas do receptor de GLP-1 entre mulheres jovens com DM2, devido à sua eficácia no controle glicêmico e perda ponderal, suscita a necessidade de se discutir a respeito do seu manejo no período pré concepção. O guideline recomenda a interrupção desses agentes antes da concepção, com transição planejada para terapias seguras na gestação, como insulina e metformina. A justificativa é a ausência de dados humanos robustos sobre segurança fetal, a alta afinidade lipofílica e longas meias-vidas desses fármacos (ex: semaglutida), o que aumenta o risco de exposição fetal inadvertida durante a organogênese. Até o momento, carecemos de ensaios clínicos com aGLP-1 em gestantes, e estudos pré-clínicos levantam preocupações quanto a alterações placentárias e riscos fetais.
- Metformina associada à insulina: não recomendar associação de rotina
Apesar do uso disseminado de metformina em pacientes com DM2, a evidência atual não respalda sua adição sistemática à insulina durante a gestação. Esta recomendação vem em consonância com os guidelines da SBD, que sugere o uso da metformina para gestantes com DM2 apenas em situações específicas, como o ganho de peso materno/fetal excessivo e sobretudo se necessidade de altas doses de insulina. Estudos mostraram benefícios como menor ganho ponderal materno e redução da taxa de GIG (feto grande para a idade gestacional), mas também relataram um aumento do risco de PIG (feto pequeno), além de modificações ainda incertas na programação metabólica da prole.
A metformina atravessa a placenta, alcança concentrações fetais significativas e pode afetar vias relacionadas ao metabolismo energético, adipogênese e sensibilidade insulínica fetal. O guideline recomenda que sua manutenção durante a gestação seja individualizada, com base na relação risco-benefício, no histórico obstétrico e na preferência da paciente, mas não indicada como padrão.
- Dieta com menor teor de carboidratos pode ser aceitável
Historicamente, a recomendação nutricional para gestantes com diabetes sempre incluiu a ingestão mínima de 175 g de carboidratos por dia, baseada em supostos requerimentos fetais de glicose. No entanto, o guideline atual reconhece que essa diretriz não se apoia em estudos de alta qualidade. Assim, dieta com menos de 175 g/dia de carboidratos pode ser aceitável, desde que monitorada por nutricionista experiente, com atenção ao crescimento fetal e à adequação calórica total.
Dietas com restrição moderada de carboidratos podem melhorar a variabilidade glicêmica, reduzir picos pós-prandiais e permitir menor dose de insulina exógena, principalmente em pacientes com resistência insulínica acentuada. No entanto, é essencial evitar cetose e deficiências nutricionais, o que requer acompanhamento multiprofissional rigoroso.
- O uso do CGM pode ser recomendado para gestantes com DM2
Talvez esta seja a recomendação mais “polêmica” do novo posicionamento. Apesar de não existirem ensaios clínicos randomizados especificamente em gestantes com DM2 utilizando CGM, os dados derivados de estudos em DM1, de acordo com os autores do novo guideline da Endocrine Society, seriam suficientes para justificar a extrapolação. A diretriz recomenda, portanto, a preferência pelo uso de CGM (monitor contínuo de glicose) em vez de automonitorização convencional através de medidas de glicemia capilar (SMBG). A monitorização contínua oferece dados sobre variabilidade glicêmica, tempo no alvo (TIR), eventos de hiperglicemia e hipoglicemia que seriam sub detectados pelas glicemias capilares. Isso é particularmente útil na gestação, onde o controle glicêmico exige precisão milimétrica para evitar desfechos como macrossomia, pré-eclâmpsia e sofrimento fetal. O uso do CGM também contribui para maior engajamento da paciente e melhora a tomada de decisão terapêutica em tempo real.
- Evitar uso exclusivo de alvo <140 mg/dL por 24h no CGM
Algumas propostas sugerem adotar como meta única do CGM a manutenção de glicemias <140 mg/dL ao longo das 24h. A SBD, recomenda, por exemplo, a meta do CGM com intervalos entre 63 e 140 mg/dl em 70% do tempo. O guideline não recomenda substituir os alvos glicêmicos clássicos da gestação por esse único parâmetro, pois tal estratégia pode mascarar exposições prejudiciais à hiperglicemia de jejum, fator fortemente associado a desfechos adversos. A recomendação é manter as metas padronizadas: glicemia de jejum <95 mg/dL, 1h pós-prandial <140 mg/dL, 2h <120 mg/dL, avaliando o TIR como complemento e não como único parâmetro de controle.
- Uso de sistemas híbridos em alça fechada (HCL) em gestantes com DM1
A recomendação de uso de sistemas híbridos em alça fechada (HCL) em gestantes com DM1 reflete a tendência da endocrinologia moderna em migrar da insulinoterapia intensiva convencional para sistemas automatizados de entrega de insulina. Ensaios recentes mostram que o HCL melhora significativamente o tempo em faixa, reduz hipoglicemias noturnas e melhora a qualidade de vida da gestante.
A fisiologia glicêmica instável do DM1 durante a gestação, com aumentos abruptos da resistência insulínica no segundo e terceiro trimestres, torna o HCL uma ferramenta de alto valor. A implementação, contudo, exige treinamento, suporte técnico, disponibilidade de dispositivos e capacidade da equipe em interpretar dados e ajustar algoritmos, uma vez que vários dos dispositivos apresentam limitações quanto ao alvo glicêmico utilizado para programar a taxa de infusão basal, o que pode limitar seu uso nesse cenário.
- Avaliação individualizada para antecipação do parto
A decisão sobre induzir o parto ou realizar cesárea eletiva deve ser individualizada em gestantes com DM pré-gestação, especialmente a partir da 38ª semana de gestação. O guideline reconhece que o risco de natimortalidade, macrossomia, distocia de ombro e complicações neonatais aumenta após esse período, mesmo em pacientes com bom controle glicêmico.
A recomendação é avaliar com base em parâmetros maternos (HbA1c, comorbidades, complicações microvasculares), fetais (crescimento, perfil biofísico, dopplervelocimetria) e obstétricos (histórico de parto anterior, condições do colo uterino). Não há uma indicação fixa para indução ou cesariana — a conduta deve ser multidisciplinar e baseada em risco-benefício.
- Acompanhamento endócrino estruturado no pós-parto
Por fim, o guideline recomenda que todas as gestantes recebam acompanhamento endócrino estruturado no puerpério, inclusive após abortos ou perdas gestacionais. O pós-parto é uma fase crítica, marcada por instabilidade glicêmica, alterações no metabolismo da insulina, lactação e risco elevado de abandono do seguimento.
Em pacientes com DM1, ajustes rápidos na dose de insulina são necessários nas primeiras 48h. Em DM2, o retorno à metformina ou outras terapias orais deve considerar lactação e risco cardiovascular. Além disso, o puerpério é o momento ideal para reavaliar planejamento reprodutivo, detectar disfunções tireoidianas autoimunes, rastrear depressão pós-parto e abordar fatores cardiometabólicos da mãe e da criança.
Considerações e mensagem prática
Este guideline traz ponderações importantes e atuais para profissionais envolvidos na atenção integral à mulher com diabetes. Em países com elevada prevalência de DM2 em mulheres jovens, como o Brasil, e onde o acesso a tecnologias como CGM e HCL ainda é limitado, há um desafio maior na implantação de parte das recomendações.
Contudo, a valorização da triagem reprodutiva e do cuidado pré-concepção estruturado são acessíveis e reforçam o papel ativo do endocrinologista como educador e gestor de risco. Por fim, o foco no pós-parto como fase crítica e estratégica representa um avanço importante, muitas vezes negligenciado na prática clínica.
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