Embora o diabetes tipo 1 (DM1) seja tradicionalmente considerado uma condição da infância ou adolescência, dados recentes demonstram que o diagnóstico na vida adulta é mais frequente do que se imaginava. De fato, registros europeus mostram incidência similar entre indivíduos de 0 a 19 anos e aqueles com mais de 40 anos. Como a idade adulta ocupa um intervalo cronológico muito maior, estima-se que a maioria dos casos de DM1 se manifeste após os 20 anos.
Esse subtipo do DM1 — de início na vida adulta — apresenta características distintas em relação à forma pediátrica. Em geral, há maior preservação da secreção endógena de insulina, o que pode ser detectado por níveis mensuráveis de peptídeo C mesmo anos após o diagnóstico, inclusive considerando-se como um subtipo com nome específico, o LADA (Latent Autoimmune Diabetes in Adults). Além disso, é mais frequente encontrarmos pacientes diagnosticados com DM1 na idade adulta apresentando fatores como excesso de peso, obesidade, dislipidemia e hipertensão no momento da apresentação — refletindo um risco basal mais elevado para complicações cardiovasculares e renais.
Ao mesmo tempo, ainda que o tratamento do DM1 venha evoluindo com o uso cada vez mais frequente de tecnologias, como os sistemas de infusão contínuos de insulina, os sistemas automatizados e híbridos, o DM2 vê além de terapias igualmente impactantes, o surgimento de tratamentos que promovem também redução de risco cardiovascular e renal, ainda ausentes para pacientes com DM1.
Diante dessa heterogeneidade fenotípica, surge a hipótese de que intervenções precoces possam modificar o curso da doença, preservando a função residual das células β e promovendo proteção cardiorrenal. Nesse contexto, os agonistas do receptor de GLP-1 — já consagrados no manejo do diabetes tipo 2 — ganham atenção como possíveis agentes adjuvantes no DM1 de início na vida adulta. O tema foi revisitado em um painel na conceituada revista Nature Reviews Endocrinology recentemente e trazemos para revisão e discussão no portal.
Por que os agonistas de GLP-1 poderiam desempenhar um papel no tratamento do DM1
Indivíduos com DM1 de início na vida adulta apresentam maior probabilidade de apresentar alguma função residual das células β. Em grandes coortes, mencionadas pelos autores da revisão, pacientes diagnosticados após os 20 anos apresentaram níveis significativamente mais altos de peptídeo C, mesmo na ausência de estímulo, quando comparados aos diagnosticados na infância. Essa reserva funcional, ainda que modesta, pode ser de interesse, uma vez que podemos direcionar terapias para sua preservação.
Além disso, dados de registros mostram que sobrepeso e obesidade são marcadamente mais prevalentes entre adultos com DM1 recente. Por exemplo, entre os diagnosticados entre 25 e 39 anos, 27% tinham sobrepeso e 12% obesidade no momento do diagnóstico. Em outras coortes recentes, mais de 60% apresentavam dislipidemia e cerca de um quarto hipertensão arterial. Essas comorbidades não apenas agravam o controle metabólico, como aumentam consideravelmente o risco de eventos cardiovasculares e renais.
Os agonistas do receptor de GLP-1 apresentam um perfil terapêutico interessante para tais pacientes, uma vez que promovem redução de peso e da glicemia, diminuem a necessidade de insulina, têm baixo risco de hipoglicemia e oferecem efeitos pleiotrópicos benéficos sobre o sistema cardiovascular e renal. A classe, porém, ainda não é aprovada para uso em pacientes com DM1. Os dados disponíveis provêm de estudos clínicos com uso off-label ou em protocolos de pesquisa.
Veja mais: Qual o impacto dos inibidores de SGLT-2 e agonistas de GLP-1 em diabéticos tipo 1?
Evidências clínicas: o que sabemos até agora
Os estudos mais robustos sobre o tema são os ensaios clínicos randomizados ADJUNCT ONE e ADJUNCT TWO, que avaliaram a eficácia da liraglutida como adjuvante à insulinoterapia em adultos com DM1.
O ADJUNCT ONE, com 1.398 participantes seguidos por 52 semanas, demonstrou que as doses de 1,2 mg e 1,8 mg de liraglutida proporcionaram reduções significativas de HbA1c e de peso corporal, além de permitir redução das doses de insulina. Contudo, observou-se aumento das taxas de hipoglicemia sintomática e de episódios de hiperglicemia com cetose, especialmente com a dose mais alta. Análises de subgrupos revelaram que os efeitos benéficos foram mais pronunciados entre os participantes com peptídeo C detectável — ou seja, aqueles com secreção residual de insulina. Nesses indivíduos, a incidência de hipoglicemia e de cetose também foi menor.
O ADJUNCT TWO, com duração de 26 semanas e 835 participantes, reforçou essas conclusões. Todas as doses de liraglutida promoveram redução significativa de HbA1c, peso e doses de insulina, com perfil de segurança semelhante ao estudo anterior. Novamente, os melhores resultados foram observados em pacientes com função residual de células β.
Complementando esses achados, uma análise pós-hoc desses ensaios mostrou que a eficácia e segurança da liraglutida não dependiam do HbA1c, do IMC ou do regime de insulina basal-prandial. O único fator preditivo de resposta terapêutica foi a presença de secreção residual de insulina. Esse dado reforça a importância de identificar precocemente os candidatos mais prováveis a se beneficiar da terapia com GLP-1 no DM1 — possivelmente utilizando o peptídeo C como biomarcador de elegibilidade.
Além dos estudos com liraglutida, dados preliminares sugerem benefícios também com a semaglutida. Em uma série retrospectiva publicada em 2023, dez pacientes com DM1 recente (idade média 21–39 anos), todos com HbA1c inicial de 11,7% e peptídeo C em média de 0,65 ng/mL, iniciaram tratamento com semaglutida em até três meses após o diagnóstico. Em seis meses, a HbA1c caiu para 5,9%, e em um ano, chegou a 5,7%. A secreção de peptídeo C aumentou, e todos os pacientes descontinuaram insulina prandial; sete também suspenderam a insulina basal. Não foram observados episódios de cetoacidose diabética nem eventos adversos graves. Esses dados, embora limitados pela ausência de grupo controle e pelo pequeno número de participantes, são promissores.
Impacto da semaglutida em pacientes com DM1 e obesidade
Apesar de não mencionado no painel, o ADJUST-T1D, publicado recentemente no NEJM e apresentado na ADA 2025 (e coberto pelo portal) foi um ensaio clínico randomizado que avaliou o impacto da semaglutida em pacientes com DM1 e obesidade. O estudo foi um ensaio duplo-cego, controlado por placebo, que incluiu 72 adultos com DM1 e IMC ≥ 30 kg/m². Todos os participantes utilizavam um sistema AID havia pelo menos três meses (entre eles, Medtronic 670G/770G, Tandem Control IQ ou Omnipod 5), que avaliou o impacto da semaglutida em tais indivíduos, não categorizados de acordo com o peptídeo C residual.
Ao final de 26 semanas, 36% dos participantes no grupo semaglutida cumpriram o desfecho primário (composto pela proporção de participantes que atingiram simultaneamente os três critérios tempo na faixa-alvo glicêmica (70–180 mg/dL) superior a 70%; tempo abaixo de 70 mg/dL inferior a 4% e redução de ≥5% do peso corporal) em comparação a 0% no grupo placebo, com p < 0,001 — um resultado robusto, que demonstra uma eficácia metabólica adicional da terapia com GLP-1 em DM1 com obesidade.
A hemoglobina glicada foi reduzida em média 0,7% no grupo semaglutida, em comparação com 0,4% no placebo, com uma diferença entre grupos ajustada de –0,3% (IC95% –0,6 a –0,05). Embora modesta, a redução foi clinicamente significativa, especialmente quando combinada a outros desfechos, visto que já se trata de uma população com controle próximo do ideal e recebendo o melhor tratamento disponível no momento para DM1.
Considerações e mensagem prática
A análise trazida por Popovic e colaboradores aponta para novos direcionamentos no potencial manejo do diabetes tipo 1 de início na vida adulta. Ao reconhecer que essa forma da doença frequentemente se apresenta com secreção residual de insulina, maior carga metabólica e risco cardiovascular, devemos também direcionar esforços para reduzir tais riscos.
A hipótese de que agonistas do receptor de GLP-1 possam preservar a função residual das células β — além de oferecerem benefícios metabólicos e cardiorrenais — é plausível e respaldada por dados iniciais. Na prática clínica, contudo, o uso dessa classe ainda é restrito e fora de bula no DM1.
Embora o tratamento com insulina continue sendo a base do manejo do DM1, a possibilidade de incorporar agonistas de GLP-1 como terapia adjuvante representa um avanço conceitual com potencial impacto clínico. Estudos adicionais, idealmente randomizados e com foco no DM1 adulto de início recente, são necessários para confirmar esses efeitos e definir com clareza o papel das incretinas nesse novo cenário terapêutico.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.