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Endocrinologia25 março 2025

Evidências atuais sobre alimentos ultraprocessados no diabetes tipo 2

Revisão explorou os mecanismos pelos quais os alimentos ultraprocessados influenciam o desenvolvimento do DM2

O diabetes mellitus tipo 2 (DM2) é uma doença metabólica de alta prevalência mundial, cujo crescimento tem sido impulsionado por mudanças no estilo de vida e nos padrões alimentares das últimas décadas. O aumento do consumo de alimentos ultraprocessados (AUPs) tem sido apontado como um dos principais fatores ambientais envolvidos nesse cenário. Segundo estimativas recentes, aproximadamente 529 milhões de pessoas no mundo são afetadas pelo DM2, representando 6,1% da população global, e cerca de 26% da carga global da doença é atribuída a dietas inadequadas. Nesse contexto, os AUPs, caracterizados por formulações industriais ricas em aditivos, açúcares adicionados, gorduras refinadas e compostos químicos modificadores de textura e sabor, têm sido cada vez mais relacionados ao aumento do risco cardiometabólico e à piora da homeostase glicêmica. 

A classificação dos AUPs pelo sistema NOVA enfatiza seu grau de processamento, e não apenas a composição nutricional, o que reflete a preocupação com impactos metabólicos além do simples excesso calórico. Os AUPs podem ser definidos como comidas e bebidas manufaturadas, contendo substâncias fracionadas ou quimicamente modificadas, produzidas de forma industrializada com aditivos cosméticos tais como açúcar, sódio, gordura saturada, por exemplo, para aumentar sua palatabilidade e/ou durabilidade. Ou seja, praticamente um alimento sintético e industrializado. Atualmente, os AUPs compõem mais de 20% da dieta em países desenvolvidos, chegando a estonteantes 66% entre crianças e adolescentes entre 6 e 19 anos nos Estados Unidos (EUA). 

Embora amplamente consumidos por sua praticidade, estudos epidemiológicos e experimentais sugerem que esses alimentos não apenas contribuem para o ganho de peso e obesidade, mas também afetam múltiplos eixos metabólicos, exacerbando a resistência insulínica e a inflamação crônica.  

Diante desse cenário e da importância em se estabelecer estratégias para prevenção do diabetes, foi elaborada uma revisão narrativa, publicada recentemente no periódico Diabetologia, que explora os mecanismos pelos quais os AUPs influenciam o desenvolvimento do DM2 e abordando estratégias eficazes para reduzir seu impacto populacional.  

Leia também: Alimentos ultraprocessados geram um maior risco de sarcopenia

Evidências e mecanismos metabólicos 

A associação entre o consumo de AUPs e o risco de DM2 tem sido amplamente documentada em estudos epidemiológicos de grande escala. Os autores da revisão pontuaram sete coortes prospectivas que demonstram que para cada 10% de aumento no consumo de AUPs, há um incremento de 12% no risco de desenvolvimento de DM2, independentemente de outros fatores dietéticos ou estilo de vida. Essa relação permanece significativa mesmo após o ajuste para ingestão energética total e composição nutricional, sugerindo que o impacto dos AUPs vai além do balanço calórico e dos macronutrientes ingeridos. 

Um dos mecanismos fundamentais pelos quais os AUPs promovem a disfunção metabólica é sua capacidade de induzir hiperglicemia pós-prandial sustentada. O consumo frequente de alimentos ricos em açúcares adicionados e amidos refinados leva a picos glicêmicos mais intensos e frequentes, o que resulta em hiperinsulinemia compensatória e sobrecarga das células beta pancreáticas. Com o tempo, tal sobrecarga leva à exaustão da função secretória do pâncreas, facilitando a transição para um estado de hiperglicemia persistente e progressiva, traduzindo-se clinicamente em estágios variados de disglicemia. 

Além disso, a matriz alimentar dos AUPs frequentemente compromete a sinalização intestinal e a microbiota, fatores essenciais para a homeostase glicêmica. Estudos mostram que dietas ricas em AUPs reduzem a diversidade bacteriana intestinal e favorecem o crescimento de cepas pró-inflamatórias, levando a um aumento na permeabilidade intestinal e ao consequente influxo de lipopolissacarídeos (LPS) na circulação sistêmica. Esse quadro, conhecido como endotoxemia metabólica, ativa vias inflamatórias crônicas, agravando a resistência insulínica nos tecidos periféricos. 

Outro aspecto relevante é a exposição contínua a compostos químicos presentes nos AUPs, incluindo emulsificantes, edulcorantes artificiais e produtos de glicação avançada (AGEs), que têm sido implicados na desregulação da sensibilidade à insulina e na inflamação subclínica. Outros estudos apontados pelos autores demonstraram que emulsificantes como carboximetilcelulose e polissorbato-80 alteram a barreira intestinal e exacerbam o perfil inflamatório em modelos experimentais. Além disso, há evidências de que o consumo crônico de adoçantes artificiais pode interferir na capacidade adaptativa do pâncreas à carga glicêmica, reduzindo a secreção de incretinas e agravando a resposta insulínica ao longo do tempo. Logo, o uso de edulcorantes pode não trazer benefícios do ponto de vista de homeostase glicêmica. 

Outro fator central na relação entre AUPs e DM2 é sua contribuição para o excesso calórico e adiposidade visceral. Estudos controlados mostram que indivíduos submetidos a dietas ricas em AUPs ingerem, em média, 500 a 800 kcal a mais por dia em comparação com aqueles que consomem dietas baseadas em alimentos minimamente processados. Esse consumo excessivo está associado a um aumento acelerado da resistência insulínica hepática e muscular, fenômeno que precede o desenvolvimento do DM2. 

Apesar dessas evidências, alguns subgrupos de AUPs parecem ter impacto distinto no risco cardiometabólico. Dados da coorte NutriNet-Santé indicam que bebidas adoçadas e produtos ultraprocessados ricos em açúcares apresentam maior associação com o desenvolvimento do DM2, enquanto pães e cereais integrais ultraprocessados mostraram correlações mais fracas. Esse achado sugere que o impacto deletério dos AUPs pode ser modulado pelo perfil nutricional específico de cada produto e reforça a necessidade de políticas diferenciadas para regulamentação desses alimentos. 

Estratégias para redução do uso e do impacto de ultraprocessados 

Dada a forte relação entre os AUPs e o DM2, diversas estratégias têm sido propostas para reduzir seu impacto sobre a saúde populacional. Entre elas, destacam-se medidas regulatórias, mudanças na formulação dos produtos, incentivos ao consumo de alimentos minimamente processados e educação nutricional direcionada. 

Uma das abordagens mais eficazes tem sido a taxação de bebidas adoçadas, que já demonstrou impacto positivo na redução do consumo de açúcares livres em países como México e Reino Unido. No Brasil, políticas de rotulagem nutricional obrigatória, introduzidas recentemente, representam um avanço na conscientização do consumidor, permitindo a identificação rápida de produtos com alto teor de açúcares, gorduras saturadas e sódio. Contudo, aliando a ampla disponibilidade e custos cada vez maiores para a aquisição de alimentos saudáveis, sem maiores campanhas para conscientização sobre o impacto desses alimentos, devemos infelizmente observar a continuidade no avanço de seu consumo.  

A adoção de padrões alimentares baseados em alimentos minimamente processados, como a dieta mediterrânea e a dieta DASH, tem sido amplamente recomendada para indivíduos com alto risco metabólico. Essas dietas, ricas em fibras, gorduras insaturadas e proteínas de alta qualidade, têm mostrado efeitos positivos na melhoria da sensibilidade insulínica e na redução da inflamação sistêmica. 

Programas de educação nutricional e intervenções comunitárias também desempenham um papel crucial na redução do consumo de AUPs. Iniciativas que envolvem mudanças no ambiente alimentar, como a restrição da publicidade infantil e a criação de espaços para acesso facilitado a alimentos frescos, demonstram potencial na modificação do comportamento alimentar da população. 

Conclusões e mensagem prática 

O impacto dos AUPs no desenvolvimento do DM2 é um dos principais desafios da saúde pública atual. A evidência acumulada demonstra que esses produtos não apenas contribuem para o ganho de peso, mas também promovem disfunção metabólica por meio de alterações na microbiota intestinal, inflamação sistêmica e desregulação da sinalização insulínica. 

Espera-se que políticas mais rigorosas de regulamentação e restrição dos AUPs sejam implementadas globalmente, acompanhadas por maior investimento em ensaios clínicos de longo prazo para avaliar o impacto da substituição desses alimentos por alternativas mais saudáveis. A integração de medidas como taxação de produtos ultraprocessados, educação nutricional e reformulação de alimentos industrializados será essencial para mitigar os impactos metabólicos adversos desses produtos e reduzir a incidência global de DM2. 

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Referências bibliográficas

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