Logotipo Afya
Anúncio
Endocrinologia6 maio 2021

Doença celíaca e transtorno do espectro autista: existe relação?

Várias comorbidades podem estar associadas à doença celíaca, mas chama atenção a chance de relação com o transtorno do espectro autista.

Por Jôbert Neves

A doença celíaca (DC) é uma doença de caráter autoimune induzida pela ingestão do glúten, uma proteína alimentar, que gera uma resposta inflamatória em pacientes geneticamente suscetíveis. Essa resposta é caracterizada por uma inflamação no intestino delgado com infiltração celular e consequente atrofia vilositária, resultando nos sintomas de disabsorção. Diversas comorbidades podem estar associadas à DC, como diabetes mellitus tipo I, deficiência de IgA e tireoidites autoimunes, mas um fato que chamou a atenção é a possibilidade da relação entre doença celíaca e o transtorno do espectro autista (TEA). O primeiro relato de caso que trouxe a presença simultânea de doença celíaca e transtorno do espectro autista foi descrito em 1960 em uma coorte de cerca de 65 crianças com diagnóstico de TEA. Desde então tem-se tentado encontrar uma possível relação entre essas duas condições.

Leia também: Whitebook: Dia Mundial de Conscientização do Autismo

Estudos recentes evidenciaram que os pacientes com DC têm uma maior possibilidade de apresentarem transtornos psiquiátricos de forma geral, como ansiedade, depressão e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Nos pacientes com TEA, é observada uma maior prevalência de sintomas do trato gastrointestinal (TGI), como constipação, diarreia e dor abdominal. Por essa linha de pensamento, alguns relatos de caso afirmam que pacientes com TEA tiveram melhora dos sintomas do TGI após a instituição de uma dieta sem glúten.

Doença celíaca e transtorno do espectro autista: existe relação?

Qual mecanismo dessa relação entre DC e TEA?

Pesquisas iniciais trouxeram a hipótese da relação entre excesso de opioides e TEA após, em 1979, um pesquisador observar o comportamento de animais em uso dessas medicações e associar a semelhança de comportamento aos das crianças com TEA. A partir de então, surgiu a hipótese de que níveis excessivos de peptídeos opioides endógenos e/ou exógenos podem dificultar a neurotransmissão e o neurodesenvolvimento no sistema nervoso central (SNC), causando desordens que podem se assemelhar ao TEA. Essa hipótese levou à proposta de uma possível associação entre doença celíaca e transtorno do espectro autista, já que os peptídeos opioides podem ser produzidos pela hidrólise de proteínas alimentares, incluindo glúten e caseína.

De forma geral, a barreira hematoencefálica diminui a possibilidade da entrada dos opioides no SNC, porém, por alterações genéticas, essa barreira pode estar mais permeável, favorecendo a maior concentração destes no SNC. Outro ponto a se considerar é o aumento da permeabilidade da mucosa intestinal nos pacientes com DC, fazendo com que os níveis de opioides no sangue sejam mais elevados, consequentemente estando mais disponíveis para atingir o SNC.

Saiba mais: A introdução precoce de glúten na dieta pode reduzir a prevalência de doença celíaca

Recentemente o Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition (JPGN) lançou uma revisão sistemática sobre a relação entre DC e TEA, avaliando estudos nos bancos de dados Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE) e Excerpta Medica dataBASE (EMBASE), pesquisando por estudos que relataram simultaneamente DC e TEA entre janeiro de 1946 e outubro de 2020. Os resultados obtidos foram os seguintes:

  • Um total de 298 trabalhos foram identificados e, desses, apenas 17 atenderam aos critérios de elegibilidade, trazendo simultaneamente a avaliação de DC e TEA.
  • DC em pacientes com TEA:
    • De treze estudos, nove não relataram nenhum caso de DC em suas respectivas amostras de pacientes com TEA (representada por 572 pacientes);
    • Quatro estudos relataram a presença de DC na amostra TEA (representando 21 casos de DC em 735 pacientes com TEA);
    • Calderoni et al. relataram uma prevalência de DC de aproximadamente 2,6% (intervalo de confiança de 95% [IC 95%]: 1,0-4,2) em crianças com TEA, sendo essa significativamente maior do que a prevalência na população geograficamente correspondente (P 1⁄4 0,013);
    • Badalyan e Schwartz observaram uma prevalência de DC de 4,3% em uma pesquisa que incluiu 211 crianças com síndrome de Asperger ou algum transtorno de comportamento não especificado e 1,3% em 79 crianças com TEA, respectivamente. Esses achados não foram estatisticamente significativos;
    • No geral, 21 casos de DC foram identificados em uma amostra de 1.307 pacientes com TEA (1,61%).
  • TEA em pacientes com DC:
    • Seis estudos (incluindo 2 discutidos anteriormente) investigaram casos de TEA em uma amostra de pacientes com DC;
    • Um estudo não relatou nenhum caso de TEA no grupo DC (representado por 120 pacientes);
    • Os demais cinco estudos relataram a presença de TEA em amostras de DC (representando 210 casos de TEA em 38.426 pacientes com DC);
    • Zelnik et al. encontraram 1 caso de TEA entre uma coorte de 111 pacientes enquanto Mazzone et al. observaram 2 casos em uma amostra de 100 crianças;
    • Butwicka et al. e Ludvigsson et al. (identificaram diagnósticos de TEA antes e após o diagnóstico de DC na população sueca. Ambos estes estudos relataram odds ratios não significativos. No entanto, descreveram um aumento do risco de TEA após o diagnóstico de DC com razão de risco de 1,5 (IC 95%: 1,2-1,8) e 1,39 (IC 95%: 1,13-1,71), respectivamente.

Discussão e conclusão

Os estudos presentes não conseguem sustentar a hipótese da relação direta de TEA e DC, sem evidências significativas para tal. A revisão sistemática em questão foi a primeira a tentar encontrar essa relação, no entanto, suas limitações podem ser atribuídas, principalmente, à heterogeneidade substancial entre os estudos em relação ao modelo do estudo, faixa etária, distribuição por sexo, critérios de diagnóstico e fatores geográficos.

É importante levarmos em consideração que o estabelecimento de uma relação entre TEA e DC é um desafio, tanto para o diagnóstico correto do TEA, baseado em sinais e sintomas subjetivos, quanto para o diagnóstico da DC na população pediátrica, que requer testes sorológicos e/ou análises de biópsia associados a presença dos sintomas compatíveis. Sendo assim, mais pesquisas são necessárias para confirmar claramente uma associação entre doença celíaca e transtorno do espectro autista.

Referências bibliográficas:

  • Quan J et al. Association Between Celiac Disease and Autism Spectrum Disorder: A Systematic Review. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2021;72(5):704-711. doi: 10.1097/mpg.0000000000003051

Como você avalia este conteúdo?

Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.

Compartilhar artigo

Newsletter

Aproveite o benefício de manter-se atualizado sem esforço.

Anúncio

Leia também em Neurologia