Um recente estudo publicado no jornal Pediatrics concluiu que a introdução de glúten a partir dos 4 meses de idade foi associada à redução da prevalência de doença celíaca (DC).
Estudos anteriores sobre introdução de glúten na dieta
As diretrizes publicadas em 2008 pela Sociedade Europeia de Gastroenterologia Pediátrica, Hepatologia e Nutrição (European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition – ESPGHAN) recomendam a introdução de trigo na dieta de crianças entre as idades de 4 e 6 meses para a prevenção da DC, enquanto a criança ainda está sendo amamentada. Esta recomendação foi baseada em estudos observacionais que sugerem que tanto a introdução de trigo precoce (antes dos 4 meses) quanto tardia (acima de 6 meses) estavam associadas a um risco aumentado de DC.
Posteriormente, quatro ensaios clínicos randomizados (randomized clinical trials – RCTs) foram realizados para investigar o momento e a dose da introdução de glúten na prevenção da doença celíaca. Contudo, apenas um estudo (PreventCD) introduziu trigo antes dos 6 meses de idade em uma baixa dose diária de glúten (100 mg) a partir de 16 semanas de idade por 8 semanas, comparando a nenhuma introdução durante este tempo. Após o período de intervenção, os participantes de ambos os grupos foram aconselhados a introduzir glúten gradualmente de acordo com as recomendações padronizadas (250 mg/d aos 6 meses, 500 mg/d aos 7 meses, 1000 mg/d aos 8 meses e 1500 mg/d aos 9 meses). Nesse estudo, todos os bebês apresentavam risco elevado de DC. Nenhuma diferença significativa na prevalência aos 3 anos de idade foi encontrada entre os grupos “glúten” e “placebo”, com uma prevalência geral de 5,2% de DC. Por fim, revisões sistemáticas subsequentes e diretrizes revisadas concluíram que não havia evidência consistente para uma associação entre o tempo de introdução do glúten e a DC.
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Enquiring About Tolerance Study (EAT)
O Enquiring About Tolerance Study (EAT) foi um RCT aberto de uma intervenção dietética para a prevenção de alergia alimentar. Esse estudo avaliou dois grupos:
- Grupo de introdução precoce (early introduction group – EIG): bebês que receberam dietas com introdução de seis alimentos alergênicos (amendoim, gergelim, ovo de galinha, leite de vaca, bacalhau e trigo) a partir dos 4 meses de idade, juntamente com a amamentação;
- Grupo de introdução padrão: bebês que receberam amamentação exclusiva, evitando-se alimentos alergênicos até os 6 meses de idade (standard introduction group – SIG).
A introdução do glúten ocorreu em um período-chave, durante o qual os estudos observacionais originais sugeriram que poderia conferir um efeito protetor (ou seja, entre as idades de 4 e 6 meses). Além disso, a dose recomendada de glúten foi de 3,2 g/sem a partir das 16 semanas de idade, que é uma quantidade substancialmente maior do que outros RCTs de introdução precoce, em que a introdução recomendada de glúten nesta idade foi de 0,7 g/sem.
Apesar de RCTs anteriores não encontrarem associação entre a introdução precoce de glúten e DC e outros fatores de risco que desempenham um papel importante no desenvolvimento da doença (por exemplo, história familiar, colonização intestinal e infecções comuns durante a infância), ainda há um mecanismo plausível para introdução do glúten como uma estratégia de prevenção e, como foi demonstrado com doenças alérgicas, o perigo de que a introdução de uma quantidade muito pequena pode sensibilizar a criança a esse alimento, enquanto aqueles com uma predisposição genética podem precisar de doses regulares e maiores do alimento para induzir a tolerância.
Metodologia
Para determinar se a introdução precoce de glúten em altas doses reduz a prevalência de DC aos 3 anos de idade, um total de 1.303 crianças da população geral da Inglaterra e País de Gales foram recrutadas do estudo EAT e acompanhadas de 2 de novembro de 2009 a 30 de julho de 2012. As amostras foram coletadas de 1° de novembro de 2012 a 31 de março de 2015, e os dados foram analisados de 25 de abril de 2017 a 17 de setembro de 2018.
A avaliação da DC foi um desfecho secundário a priori do estudo EAT e, aos 3 anos de idade, todas as crianças com amostras de soro disponíveis foram testadas para anticorpos antitransglutaminase tipo 2. Crianças com níveis de anticorpos superiores a 20 UI/L foram encaminhadas a gastroenterologistas para investigação adicional independente.
Resultados
Para análise, foram incluídos 1.004 bebês, sendo que 514 eram do sexo masculino (51,2%). A idade média de introdução no grupo EIG foi de 4 meses (variação de 4 – 33 meses), contra 7 meses no grupo SIG (variação de 5 – 21 meses). Com idades entre 4 e 5 meses, apenas 2,3% das crianças no grupo SIG tinham sido introduzidas ao glúten, em contraste com 69,5% das crianças no grupo EIG.
A quantidade média (desvio padrão – DP) de glúten consumido entre as idades de 4 e 6 meses foi de 0,49 (1,40) g/sem no SIG e 2,66 (1,85) g/sem no EIG (P <0,001). O consumo médio de glúten semanal (DP) variou de 0,08 (1,00) g/sem na idade de 4 meses a 0,9 (2,05) g/sem na idade de 6 meses no SIG versus 1,3 (1,54) g/sem na idade de 4 meses a 4,03 ( 2,40) g/sem aos 6 meses de idade no EIG. Sete das 516 crianças do SIG (1,4%) tiveram um diagnóstico de DC confirmado. Em contraposição, não houve nenhum caso de DC nas 488 crianças do grupo EIG (P = 0,02).
Limitação
Os pesquisadores descreveram que uma limitação potencial desse estudo é que os diagnósticos de DC foram feitos em diferentes centros clínicos e as biópsias foram realizadas em apenas um pequeno número de casos. No entanto, a biópsia não é mais considerada necessária para confirmar um diagnóstico de DC, e todos os diagnósticos foram feitos de acordo com as diretrizes atuais da ESPGHAN, que foram atualizadas recentemente com orientações adicionais sobre diagnósticos não baseados em biópsia.
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Conclusões sobre ingestão precoce de glúten
Os resultados do estudo propõem que pode ter sido prematuro descontar o efeito da idade de introdução do glúten no desenvolvimento da doença celíaca. A ESPGHAN também atualmente recomenda a introdução de baixas doses de glúten inicialmente, apesar das evidências limitadas para apoiar essa recomendação, e os resultados do estudo EAT sugerem que uma dose mais alta pode ser uma estratégia de prevenção importante.
Os pesquisadores questionam se o estudo PreventCD teria obtido resultados diferentes se os bebês tivessem consumido maiores quantidades de glúten, que seriam mais semelhantes às consumidas pelas famílias na literatura observacional de onde se originou a hipótese da introdução precoce. Portanto, os resultados enfatizam a importância da realização de novos RCTs para investigar se a introdução precoce de glúten em altas doses é realmente uma estratégia eficaz para prevenir a doença celíaca.
No Brasil, os Departamentos de Nutrologia e de Aleitamento Materno da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) adotam a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Ministério da Saúde (MS) para que o aleitamento materno seja exclusivo até os seis meses de idade. Em casos de impossibilidade, de acordo com o Manual de Alimentação do Departamento de Nutrologia da SBP, a introdução dos alimentos deverá ser a mais ampla possível.
No entanto, um único alimento considerado alergênico deve ser introduzido a cada 3 a 5 dias, a partir do sexto mês de vida, com o objetivo de adquirir tolerância e reduzir o risco de alergenicidade. Seguindo as recomendações da ESPGHAN 2017, o glúten pode ser introduzido entre 4 e 12 meses, entretanto o consumo de grandes quantidades deve ser evitado durante as primeiras semanas após a introdução da alimentação complementar.
Referências bibliográficas:
- Logan K, et al Early gluten introduction and celiac disease in the EAT study: a prespecified analysis of the EAT randomized clinical trial. JAMA Pediatrics. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jamapediatrics/fullarticle/2770801. Acesso em 28/09/2020.
- Sociedade Brasileira de Pediatria. Manual de Alimentação – Departamento de Nutrologia. 2018. Disponível em: http://www.amape.com.br/wp-content/uploads/2018/12/MANUAL-NUTRO-SBP-2018.pdf. Acesso em 28/09/2020.
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