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Endocrinologia25 setembro 2025

Diabetes mellitus em pacientes em diálise: atualização da diretriz da SBD

A diretriz destaca a importância da individualização das condutas, da valorização de metas glicêmicas menos rígidas, do uso criterioso da HbA1c e de ferramentas complementares.

A doença renal do diabetes (DRD) é uma das complicações mais graves do diabetes mellitus, sendo responsável por quase metade dos casos de terapia renal substitutiva (TRS) no mundo e por cerca de um terço no Brasil. Trata-se de um cenário que reflete não apenas a alta prevalência do diabetes tipo 2, mas também o impacto cumulativo da obesidade e da hipertensão arterial, condições que frequentemente coexistem e aceleram a perda da função renal. Os estágios finais da DRD, quando há necessidade de hemodiálise ou diálise peritoneal, representam um ponto de inflexão no prognóstico: a morbimortalidade, sobretudo cardiovascular, torna-se muito elevada, e a condução clínica passa a envolver desafios singulares, que extrapolam o mero controle da glicemia. 

Estudos clássicos, como o DCCT e o UKPDS, demonstraram que o controle intensivo da glicemia é capaz de reduzir complicações microvasculares em pessoas com diabetes tipo 1 e tipo 2, inclusive da doença renal. Nas últimas décadas, a incorporação de novas classes terapêuticas — como os inibidores de SGLT2, os agonistas do receptor de GLP-1 e os antagonistas do receptor de mineralocorticoides não esteroidais — ampliou o arsenal de estratégias para retardar a progressão da doença renal, inclusive em fases mais avançadas. No entanto, quando o paciente atinge o estágio dialítico, a maioria desses fármacos perde aplicabilidade prática, seja por ausência de eficácia, seja por risco de efeitos adversos. Nesse contexto, a insulinoterapia se mantém como a espinha dorsal do tratamento, mas com a complexidade das alterações farmacocinéticas e do risco substancial de hipoglicemias. 

O novo posicionamento da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) 2025, publicado recentemente, busca preencher essa lacuna, oferecendo um guia pragmático e detalhado para o manejo da hiperglicemia em pacientes com DRD em diálise. A diretriz destaca a importância da individualização das condutas, da valorização de metas glicêmicas menos rígidas, do uso criterioso da HbA1c e de ferramentas complementares como a monitorização contínua da glicose, além de apresentar fluxogramas para ajuste da insulinoterapia conforme o turno da hemodiálise. Pela relevância do tema e até mesmo da dificuldade em se encontrar guias de qualidade para a situação, trazemos a atualização 2025 da SBD sobre o tema para discussão aqui no Portal Afya. 

hemodiálise

Principais novidades da diretriz

1) Estilo de vida e nutrição em pacientes com diálise

A diretriz para o manejo de diabetes em pacientes em diálise traz recomendações específicas sobre medidas de estilo de vida e nutrição nesta população. A SBD reforça que a manutenção de hábitos saudáveis continua a desempenhar papel fundamental para reduzir complicações cardiovasculares, melhorar a qualidade de vida e mitigar a perda muscular.  

O documento chama atenção para o risco de sarcopenia, muito prevalente nesse grupo, e estabelece a necessidade de aporte proteico de 1,0 a 1,2 g/kg/dia, valor superior ao recomendado para fases iniciais da doença renal crônica. Em situações de catabolismo acentuado, como infecções recorrentes ou desnutrição grave, pode-se chegar a aportes ainda maiores. A distribuição calórica deve variar entre 30 e 40 kcal/kg/dia, com composição que privilegie carboidratos de baixo índice glicêmico e proteínas de alto valor biológico, de forma a manter equilíbrio metabólico e evitar complicações adicionais como hipercalemia e hiperfosfatemia. 

2) Avaliação glicêmica e metas

A avaliação glicêmica nesses pacientes representa talvez o maior desafio prático. A hemoglobina glicada continua sendo considerada o padrão para monitoramento, mas sua interpretação deve ser feita com cautela. Fatores como anemia multifatorial, uso de eritropoetina e redução da meia-vida das hemácias podem subestimar os níveis reais de glicemia. A diretriz recomenda, portanto, que sempre que possível a HbA1c seja ajustada de acordo com o hematócrito e com a dose de eritropoetina utilizada. Ainda assim, biomarcadores alternativos, como a frutosamina e a albumina glicada, são reconhecidos como ferramentas complementares, embora também sofram interferência da hipoalbuminemia e das perdas proteicas na diálise peritoneal. Um ponto novo e de relevância é o destaque dado à monitorização contínua da glicose por sensores intersticiais. A diretriz reconhece que, embora a acurácia em pacientes dialíticos ainda exija validação, o uso de CGM é capaz de revelar episódios de hipoglicemia assintomática e variações glicêmicas não detectadas pelo automonitoramento capilar, oferecendo subsídios valiosos para ajustes de insulina. 

As metas de controle glicêmico também foram abordadas Em pacientes com doença renal crônica avançada em diálise, a diretriz brasileira recomenda uma abordagem menos rigorosa do que aquela adotada em estágios mais precoces do diabetes. Estudos observacionais demonstraram que tanto HbA1c muito baixas (<5,4%) quanto muito altas (>8,5%) se associam a maior mortalidade, configurando uma relação em curva em U. Diante disso, a SBD orienta que, sobretudo em pacientes frágeis, idosos ou com múltiplas comorbidades, uma HbA1c abaixo de 8,5% já seja considerada satisfatória. A prioridade é evitar hipoglicemias, que se mostram particularmente letais nessa população, sem abrir mão de um controle suficiente para prevenir sintomas e complicações agudas.

3) Tratamento do diabetes em pacientes em diálise

Com relação à terapia farmacológica, a insulina permanece como a principal e praticamente única terapia efetiva para pacientes com diabetes em diálise. Embora não haja ensaios clínicos randomizados de grande porte especificamente nesse grupo, a experiência acumulada em décadas de prática clínica sustenta seu uso como padrão-ouro. A diretriz recomenda que os análogos de insulina, tanto basais quanto prandiais, sejam preferidos em relação às formulações humanas, já que oferecem menor risco de hipoglicemia e maior previsibilidade de ação. Dados recentes de coortes europeias corroboram essa recomendação, mostrando menor taxa de hospitalizações em pacientes dialíticos que utilizam análogos em vez de insulina NPH. 

Apesar disso, a diretriz também discute o papel dos antidiabéticos não insulínicos em pacientes dialíticos. A maioria das classes encontra-se contraindicada ou com uso extremamente restrito, seja por risco de hipoglicemia, seja por ausência de evidência em estágios tão avançados da doença renal. As sulfonilureias, por exemplo, não devem ser utilizadas devido ao alto risco de hipoglicemia grave. A metformina está formalmente contraindicada, pelo risco de acidose láctica. Entre os inibidores de DPP-4, apenas a linagliptina, que possui eliminação predominantemente biliar, pode ser considerada como alternativa em casos selecionados. Quanto aos agonistas do receptor de GLP-1 e aos inibidores de SGLT2, embora revolucionem o manejo da doença renal crônica nas fases iniciais, ainda não existem evidências robustas que sustentem seu uso rotineiro em pacientes já em diálise, apesar de seu benefício cardiovascular. Trata-se de um tema que deve ser endereçado no futuro com maiores estudos de segurança e eficácia nesta população.

Leia também: Orientações sobre prescrição de inibidores de SGLT2 e efeitos geniturinários

Recomendações da diretriz SBD 2025 para o manejo de insulina em pacientes em hemodiálise

A diretriz de 2025 reconhece que o controle glicêmico no contexto da diálise é desafiador pela ampla variação glicêmica ao longo do dia e pelo risco aumentado tanto de hipoglicemia como de hiperglicemia pós-sessão. Por isso, define metas e ajustes para auxiliar a guiar o uso de insulina, baseando-se na glicemia pré-diálise e no horário em que o paciente realiza o procedimento. Vale lembrar que são recomendações baseadas na experiência de especialistas e que a individualização deve sempre ser realizada.

Monitorização e correção conforme a glicemia pré-diálise

  • < 126 mg/dL: recomenda-se oferecer 20 a 30 g de carboidrato antes do início da sessão, prevenindo hipoglicemia durante o procedimento. 
  • 126 a 250 mg/dL: não são necessários ajustes para início da diálise, podendo o paciente prosseguir com a sessão sem intervenção adicional. 
  • > 250 mg/dL: deve-se aplicar insulina de correção antes da diálise, com o objetivo de reduzir a hiperglicemia e minimizar risco de complicações metabólicas durante o procedimento.

Além disso, a glicemia deve ser aferida rotineiramente antes da sessão, 1 a 2 horas após o início da diálise e ao término da mesma. Nos dias sem diálise, a diretriz recomenda monitorar glicemias em jejum, antes do almoço e às 22 horas, incluindo pelo menos uma aferição semanal pós-prandial.

Ajustes de insulina de acordo com o turno da diálise

Primeiro turno de diálise 

  • Insulina NPH: Reduzir 25% da dose matinal antes da sessão; manter a segunda dose habitual. Pacientes que usam NPH à noite devem reduzir a dose noturna devido ao risco aumentado de hipoglicemia durante a madrugada.
  • Análogos de ação prolongada (degludeca e glargina): Não necessitam de alteração de dose.
  • Insulina ultrarrápida ou regular (bolus): Reduzir 25% ou mais da dose matinal aplicada no café; manter almoço e jantar habituais, com monitorização rigorosa e ajustes se necessário.

Segundo turno de diálise 

  • Insulina NPH: Reduzir 25% da dose matinal antes da sessão; a segunda dose deve ser reduzida em 25% ou mais e aplicada somente após o término da diálise.
  • Atenção especial à dose noturna, que pode precisar de redução para evitar hipoglicemias tardias.
  • Análogos de ação prolongada (degludeca e glargina): Não requerem ajustes.
  • Insulina ultrarrápida ou regular (bolus): Reduzir 25% ou mais da dose do café; o almoço deve ser ajustado apenas se glicemia > 250 mg/dL, e o jantar mantido em dose habitual, sempre com monitorização, principalmente durante a madrugada.

Terceiro turno de diálise 

  • Insulina NPH: Pela manhã, a dose habitual deve ser mantida; já a segunda dose, aplicada no horário do almoço, deve ser reduzida em 25% ou mais. A dose noturna pode necessitar ajustes individualizados conforme perfil glicêmico.
  • Análogos de ação prolongada (degludeca e glargina): Permanecem em dose habitual, sem alterações.
  • Insulina ultrarrápida ou regular (bolus): Manter a dose habitual no café da manhã, reduzir em 25% ou mais a dose do almoço e aplicar correção apenas se glicemia > 250 mg/dL após a diálise. Evitar aplicação de insulina regular imediatamente antes da sessão.

GLP-1 e risco de degeneração macular relacionada à idade (DMRI)

Como esta nova diretriz pode influenciar a nossa prática médica

O principal impacto da diretriz é o reforço da individualização, com foco em metas menos rígidas de controle glicêmico, equilibrando segurança e qualidade de vida em uma população altamente vulnerável. O reconhecimento de que hipoglicemias podem ser até mais deletérias do que uma HbA1c levemente acima do padrão transforma a forma como endocrinologistas e nefrologistas devem encarar o tratamento. 

Outro ponto prático é a incorporação da monitorização contínua da glicose como ferramenta auxiliar. Embora ainda não esteja amplamente disponível no sistema público, sua crescente disseminação e uso possibilita identificar melhor os padrões glicêmicos e hipoglicemias, possibilitando ajustes mais finos e seguros da insulinoterapia. A diretriz também se destaca por fornecer recomendações objetivas para o dia a dia: quando reduzir a dose de insulina, quando aumentar, como interpretar a HbA1c e quais marcadores alternativos considerar.

O fortalecimento do papel dos análogos de insulina como primeira escolha é outra orientação relevante. Para pacientes em diálise peritoneal, o reconhecimento do impacto da absorção de glicose das soluções dialíticas e a recomendação de ajustes proporcionais de insulina trazem clareza a uma área que frequentemente gerava insegurança terapêutica. 

A nova diretriz traz uma visão mais pragmática sobre o tratamento do diabetes em pacientes dialíticos, lançando luz sobre um tema pouco abordado na literatura.

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Referências bibliográficas

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