A prática de atividade física é um componente essencial no manejo do diabetes tipo 1 (DM1), promovendo benefícios significativos em termos metabólicos, cardiovasculares e psicológicos.
Contudo, as flutuações glicêmicas associadas ao exercício representam um grande desafio, frequentemente desencorajando pacientes a manterem uma rotina de exercícios. A introdução de sistemas automatizados de administração de insulina (AID) trouxe avanços significativos no controle glicêmico em repouso e na vida diária. Porém, durante a atividade física, o desempenho desses dispositivos ainda apresenta limitações, como atrasos nos algoritmos e respostas inadequadas às rápidas oscilações glicêmicas.
Visando trazer um guia para auxílio à endocrinologistas e pacientes sobre como manejar os dispositivos durante a prática da atividade física, a European Association for the Study of Diabetes (EASD) e a International Society for Pediatric and Adolescent Diabetes (ISPAD) elaboraram um consenso sobre o assunto, trazendo orientações práticas e baseadas em evidências para otimizar o uso de sistemas AID em indivíduos com diabetes tipo 1 que praticam atividade física, considerando as características específicas de diferentes tipos de exercício, intensidades, populações e tipo de dispositivo utilizado. Pela importância do tema, trazemos os destaques e principais pontos abordados para discussão aqui no portal.
O consenso
O consenso foi elaborado a partir de uma análise abrangente da literatura, incluindo estudos randomizados, observacionais e relatórios de casos clínicos. A técnica Delphi foi usada para integrar a expertise de um grupo multidisciplinar de endocrinologistas, educadores em diabetes e especialistas em exercício. As recomendações foram baseadas em evidências de alto nível, mas também incluíram orientações práticas baseadas em experiências clínicas e dados do mundo real. O documento é voltado para a orientação do uso dos AIDs em indivíduos com DM1, abordando tanto crianças e adolescentes (que se caracterizam por maior variabilidade glicêmica devido ao crescimento e puberdade), adultos jovens, que demandam controle glicêmico preciso para otimizar o desempenho físico e prevenir complicações metabólicas e também para adultos mais velhos, onde o foco reside sobretudo na prevenção de complicações cardiovasculares e minimização de hipoglicemias, especialmente durante atividade física.
Os dados foram organizados de acordo com os tipos de exercício (aeróbico, anaeróbico, misto) e a disponibilidade de diferentes sistemas AID no mercado.
As recomendações práticas foram organizadas de acordo com os momentos antes, durante e após o exercício, além de orientações específicas para diferentes tipos de sistemas AID e atividades físicas.
Antes da atividade física
Antes de iniciar o exercício, é fundamental o planejamento. Para isso, é aconselhável:
- Alvo glicêmico e bolus
– Ajustar o alvo glicêmico do sistema pelo menos 1 a 2 horas antes do exercício, aumentando para 130–180 mg/dL, dependendo da intensidade e duração da atividade.
– Reduzir o bolus prandial em 25%–50% para refeições que antecedem o exercício aeróbico, sobretudo se exercícios planejados para até 2h após a refeição e com previsão de queda da glicemia durante (ex: atividades aeróbicas)
– Para atividades não planejadas, ajustar o alvo glicêmico para cima, para evitar quedas persistentes na glicemia.
– Para atividades anaeróbicas, manter o bolus padrão e monitorar a glicemia para evitar hiperglicemia induzida por catecolaminas.
- Configuração do Sistema AID e taxa de infusão basal
– Ativar o modo de exercício, se disponível, reduzindo a insulina basal em sistemas como Omnipod 5 e Medtronic MiniMed 780G.
– Para sistemas sem modos específicos para exercícios, é recomendado ajustar manualmente a taxa de infusão basal para 50%–80% do valor normal.
- Preparação: medida da glicemia
Medir a glicemia antes do exercício:
< 126 mg/dL: Consumir carboidratos rápidos (15–20 g).
126–180 mg/dL: Prosseguir sem ajustes adicionais.
180 mg/dL: Verificar cetonas e evitar iniciar o exercício caso cetonas estejam elevadas (>1,5 mmol/L).
Veja também: Atividade física no diabetes tipo 1: recomendações
Durante a atividade física
Durante a prática, é importante manter um monitoramento contínuo da glicemia ou através do uso de CGMs (monitores contínuos de glicose), saber quando é importante consumir carboidratos e quando é necessário realizar ajustes na infusão de insulina. Dividimos aqui novamente em 3 partes:
- Monitorização glicêmica
– Acompanhar a glicemia a cada 20–30 minutos, usando CGM ou glicosímetros, especialmente em exercícios prolongados (>1 hora).
– Observar setas de tendência no CGM:
- Setas descendentes (< 126 mg/dL): Consumir carboidratos, sem “avisar” ao sistema AID: 3-6g se tendência horizontal; 6-9g se queda leve, 9-12g para queda ou 12-20g se mais que 2 setas de tendência de queda. Checar também cerca de 30 min após o consumo.
- Setas ascendentes (> 180 mg/dL): Ajustar insulina ou considerar pausa na ingestão de carboidratos
- Consumo de carboidratos
– Para exercícios aeróbicos prolongados (> 60 minutos), ingerir 10–15 g de carboidratos por hora.
– Em atividades mistas ou anaeróbicas curtas, o consumo de carboidratos pode ser necessário apenas se sinais de hipoglicemia surgirem.
- Ajustes em Tempo Real
– Reduzir manualmente a insulina basal em sistemas sem modos automatizados, como Beta Bionics iLet, durante exercícios aeróbicos.
Após a atividade física
Após a prática do exercício, a sensibilidade à insulina pode sofrer consideráveis oscilações, a depender da modalidade de atividade praticada e tempo após o exercício. Portanto, a atenção deve continuar em outras etapas:
- Monitoramento Pós-Exercício
– Verificar a glicemia imediatamente após o término do exercício e repetir as medições a cada 2–3 horas, especialmente à noite.
– Para exercícios intensos ou prolongados, considerar aumentar o alvo glicêmico noturno para prevenir hipoglicemia tardia.
- Reposição Nutricional
– Ingerir uma refeição ou lanche contendo carboidratos e proteínas (15–30 g de carboidratos) para restaurar os estoques de glicogênio.
- Configuração do AID
– Reverter para configurações padrão 1–2 horas após o exercício, dependendo da estabilidade glicêmica.
Configurações específicas de sistemas em alça fechada
Alguns sistemas, sobretudo os sistemas híbridos em alça fechada (que fazem ajustes automáticos na taxa de infusão de insulina de acordo com a glicose intersticial) ou os pâncreas artificiais podem requerer ajustes em configurações específicas. O consenso traz como recomendação os seguintes ajustes:
– Medtronic MiniMed 780G: Ativar o “Temp Target” para aumentar o alvo glicêmico para 150 mg/dL antes de exercícios aeróbicos.
– Omnipod 5: Ativar o “Activity Mode” para reduzir a insulina basal em até 50% e aumentar o alvo glicêmico para 150 mg/dL.
– Tandem t:slim X2: Ajustar manualmente o alvo glicêmico entre 140 e 160 mg/dL e reduzir a insulina basal em até 80% durante o exercício.
– Beta Bionics iLet: Elevar manualmente o alvo glicêmico para 130 mg/dL, pois o sistema não oferece modos específicos de exercício.
Vale lembrar que desses últimos, apenas a MiniMed 780g está disponível em nosso país e que alguns dos ajustes recomendados são trazidos tanto pelos próprios fabricantes como baseados em opiniões de especialistas. Contudo, num tema onde há uma escassez homérica de informações disponíveis, trata-se de uma luz para guiar condutas para esse cenário específico.
Considerações e perspectivas
Os sistemas AID apresentam grandes avanços no manejo glicêmico em atividades físicas, mas ainda enfrentam limitações tecnológicas, como atrasos na detecção de mudanças glicêmicas e respostas insuficientes a exercícios não planejados. Os avanços em sistemas AID, incluindo a integração de inteligência artificial e sensores metabólicos avançados, têm o potencial de melhorar significativamente o manejo glicêmico durante o exercício. Inovações futuras devem focar na criação de dispositivos que antecipem variações glicêmicas e na otimização automática da administração de insulina e orientação sobre necessidade de consumo de carboidratos.
Conclusão e mensagem prática
Equipes de saúde precisam ser capacitadas a interpretar os dados de CGM e a ajustar os parâmetros do AID para melhorar os resultados. Os pacientes precisam ser orientados devidamente.
A mensagem é ser possível utilizar-se de medidas para mitigar riscos na prática de atividade física em nossos pacientes com DM1 em uso de AIDs. Contudo, é fundamental que tais orientações sejam individualizadas de acordo com a atividade planejada e características inerentes de cada paciente. Reside aqui um exemplo onde a medicina personalizada é fundamental para melhores desfechos.
Estudos de longo prazo, com populações mais diversificadas, serão essenciais para validar as recomendações e medidas de saúde pública são essenciais para ampliar o acesso a essas tecnologias.
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