Descoberta na década de 1980 como peptídeo co-secretado com insulina pelas células beta pancreáticas, a amilina permaneceu por muito tempo subvalorizada em relação à sua importância fisiológica e terapêutica. A amilina exerce ações supressoras pós-prandiais que contribuem para o controle da ingestão alimentar, da glicemia e da secreção de glucagon — desempenhando, portanto, uma função homeostática complementar à insulina.
No entanto, sua estrutura altamente amiloidogênica dificultou o desenvolvimento de fármacos por décadas. A pramlintida, seu primeiro análogo aprovado, teve uso clínico marginal devido à baixa praticidade e tolerabilidade. Apenas recentemente, com o advento de análogos mais estáveis e duradouros como a cagrilintida, a amilina retornou aos holofotes.
Devido a crescente importância da compreensão de tais agentes no metabolismo glicêmico e no controle da obesidade, haja vista a quantidade de novas moléculas em desenvolvimento para o tratamento do diabetes e obesidade, trazemos para discussão uma revisão recentemente publicada na Nature Endocrine Reviews sobre os principais avanços científicos e clínicos relacionados à amilina, discutindo sua fisiologia, receptores, interações com incretinas e as promissoras perspectivas clínicas de seus análogos de nova geração, tanto em monoterapia quanto em combinações com GLP-1RAs.
QUEM É A AMILINA
A amilina é secretada em resposta à ingestão de nutrientes, em proporções equimolares à insulina, diretamente dos grânulos das células beta pancreáticas. Em indivíduos saudáveis, sua função é limitar a excursão pós-prandial da glicose e promover saciedade. De acordo com a revisão, Isso é alcançado por três mecanismos principais:
- Redução da motilidade gástrica e retardamento do esvaziamento gástrico – diminuindo a taxa de absorção de glicose e promovendo maior controle glicêmico;
- Supressão da secreção de glucagon pós-prandial – evitando assim a produção hepática de glicose de forma inapropriada;
- Ativação de vias centrais de saciedade no sistema nervoso central – particularmente em estruturas circunventriculares como a área postrema, o órgão subfornical (SFO), o núcleo paraventricular do hipotálamo (PVN) e o núcleo do trato solitário (NTS).
A sinalização da amilina ocorre por meio de receptores heterodiméricos compostos pelo receptor de calcitonina (CTR) e proteínas RAMP (receptor activity-modifying proteins). As três combinações conhecidas — AMY1, AMY2 e AMY3 — conferem especificidade de ação e apresentam uma distribuição distinta em diferentes tecidos. A estrutura amiloidogênica do peptídeo nativo, especialmente na forma humana, o torna propenso à formação de fibrilas insolúveis, que podem se acumular no pâncreas em pacientes com diabetes tipo 2, contribuindo para disfunção celular.
Embora os níveis circulantes de amilina estejam aumentados em indivíduos com obesidade e hiperinsulinemia, essa elevação parece representar uma compensação ineficaz, diante de uma provável resistência aos efeitos centrais e periféricos do hormônio — mecanismo que remete à resistência à leptina ou à insulina em estados metabólicos desregulados.
PRAMLINTIDA: A PRECURSORA
A pramlintida, primeiro análogo de amilina aprovado para uso clínico, foi desenvolvida com substituições pontuais de três resíduos para impedir a formação de agregados amiloides. Seu perfil farmacodinâmico mimetiza os efeitos fisiológicos da amilina, sendo capaz de retardar o esvaziamento gástrico, reduzir a secreção de glucagon e promover modesta perda de peso (1 a 2 kg).
A mesma foi aprovada como adjuvante à insulina para pacientes com diabetes tipo 1 ou tipo 2 em insulinoterapia intensiva. No entanto, seu uso nunca foi amplamente adotado. Isso se deu por várias limitações, como a necessidade de injeções subcutâneas antes de cada refeição, risco aumentado de hipoglicemia (quando usada com insulina) e alta taxa de náuseas. Estudos clínicos não mostraram impacto em desfechos cardiovasculares ou macrovasculares, restringindo seu papel clínico a pacientes motivados e metabolicamente instáveis.
Ainda assim, a pramlintida serviu como uma “prova de conceito” de que a modulação farmacológica do eixo amilina–receptor é possível em humanos e poderia ter uma aplicabilidade clínica, abrindo caminho para análogos mais modernos e toleráveis.
ANÁLOGOS DE SEGUNDA GERAÇÃO: ONDE ESTAMOS E PARA ONDE VAMOS
Com base nas limitações da pramlintida, foi desenvolvido um novo análogo, a cagrilintida. Trata-se de um peptídeo sintético derivado da calcitonina humana, desenhado para se ligar preferencialmente ao receptor AMY1, com estabilidade aumentada e meia-vida prolongada, permitindo administração semanal.
Ensaios de fase 1 e 2 mostraram que a cagrilintida exerce efeitos fisiológicos potentes, promovendo supressão sustentada do apetite, retardamento do esvaziamento gástrico e redução do peso corporal. Em monoterapia, doses de 1,8 mg a 2,4 mg promoveram perdas de 6,0% a 8,1% do peso em 26 semanas em indivíduos com obesidade, com perfil de segurança aceitável. Náuseas foram os efeitos adversos mais frequentes, mas menos intensos e menos abruptos que com a precursora pramlintida, provavelmente devido ao perfil farmacocinético mais gradual.
O maior avanço, no entanto, veio da combinação da cagrilintida com a semaglutida 2,4 mg (CagriSema), em estudo de fase 3 publicado no Lancet. Essa associação resultou em perda de peso média de 15,6% em apenas 32 semanas, superando em muito a eficácia de cada droga isoladamente. Os mecanismos parecem convergir em vias paralelas — enquanto o GLP-1R atua em núcleos hipotalâmicos, a amilina atinge preferencialmente estruturas como área postrema e núcleos hipotalâmicos complementares.
A combinação amilina + GLP-1 se destaca como uma estratégia promissora em casos de obesidade refratária, hiperfagia intensa ou resposta subótima ao agonismo isolado do GLP-1R.
Uma nova estratégia, também recém publicada em estudos de fase 2 e apresentada no congresso da ADA 2025 é a amycretin, uma molécula híbridas de GLP-1 e amilina, que reúne em uma única cadeia os domínios funcionais de ambos os peptídeos, otimizando farmacodinâmica e biodisponibilidade, também com eficácia interessante, a se confirmar em estudos de fase 3.
Estas moléculas tem como objetivo alcançar reduções de peso superiores a 20%, mantendo um perfil de segurança aceitável, e possivelmente minimizando efeitos adversos por meio de sinalização enviesada e liberação prolongada.
O QUE PODEMOS APRENDER COM ESTE ESTUDO
A revisão nos atualiza sobre a compreensão do papel fisiológico da amilina e traz maior enfoque nesta via como um dos pilares emergentes no tratamento farmacológico da obesidade e do diabetes tipo 2. A amilina não é mais apenas um hormônio acessório – agora, ocupa um papel de destaque dentre as novas terapias graças à sua atuação integrada sobre sinais periféricos e centrais, e à sua complementaridade com as incretinas.
Na prática médica, isso se traduz em novas oportunidades clínicas, especialmente em pacientes com obesidade refratária ao GLP-1, com sintomas de hiperfagia, ou com desregulação neurocomportamental da alimentação. A introdução de análogos como a cagrilintida e a amycretina representam alternativas terapêuticas interessantes, através do benefício adicional proporcionado pela combinação de análogos de amilina a agonistas de GLP-1.
Além disso, o reconhecimento de que indivíduos com obesidade possuem níveis elevados de amilina mas baixa responsividade fisiológica aponta para um quadro de resistência à amilina, ainda pouco explorado clinicamente. Por fim, a emergência da amilina como alvo terapêutico reafirma um princípio cada vez mais evidente na endocrinologia: o controle do peso e da glicemia depende de múltiplos eixos hormonais, agindo de forma coordenada no sistema nervoso central e na periferia.
Veja também: Medicamentos para obesidade
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