A retinopatia diabética (RD) permanece como uma das principais causas de cegueira evitável no mundo, sobretudo em pessoas com diabetes tipo 1 ou tipo 2 de longa duração. Apesar da disponibilidade de terapias para suas formas avançadas, os resultados são aquém dos ideais e nosso maior desafio na prática clínica ainda reside na detecção precoce e prevenção da progressão — uma barreira amplificada por problemas de acesso, falta de infraestrutura oftalmológica e baixa adesão dos pacientes aos exames oftalmológicos periódicos.
Durante o ADA 2025, foi feito um debate sobre soluções práticas para esse problema com a apresentação conjunta de dois especialistas norte-americanos: o Dr. Rithwick Rajagopal (Washington University), que abordou a eficácia dos algoritmos de inteligência artificial (IA) para rastreamento autônomo da RD, e a Dra. Roomasa Channa (University of Wisconsin), que discutiu os desafios práticos de implementação dessas tecnologias e outras formas de rastreio em ambientes clínicos reais, especialmente em unidades de atenção primária. A seguir, revisamos em detalhes cada uma das apresentações.
Inteligência artificial para triagem eficaz
O Dr. Rajagopal iniciou sua explanação situando o papel da inteligência artificial como solução direta a múltiplas barreiras enfrentadas na triagem da RD. A proposta de implementar sistemas de IA diretamente no consultório do médico de atenção primária ou do endocrinologista visa eliminar a necessidade de uma visita adicional ao oftalmologista apenas para rastreamento. Além disso, essas ferramentas têm o potencial de reduzir custos, melhorar a educação em saúde e aumentar a adesão dos pacientes ao acompanhamento visual.
A triagem baseada em IA, segundo o Dr. Rajagopal, tem o potencial de superar barreiras que hoje impedem milhões de pessoas com diabetes de acessarem um cuidado oftalmológico adequado. Ao permitir a realização de exames em consultórios de atenção primária ou endocrinologistas, sem necessidade de dilatação pupilar, a IA torna possível eliminar a obrigatoriedade da visita adicional ao oftalmologista. Isso, por si só, pode reduzir custos, simplificar fluxos de atendimento e — talvez o mais importante — aumentar a adesão dos pacientes ao cuidado com a visão.
A evolução das câmeras retinianas nos últimos anos foi destacada como um dos pilares dessa transformação. De modelos de mesa convencionais, surgiram equipamentos cada vez mais compactos e portáteis, com versões acopladas a smartphones e capazes de obter imagens de altíssima qualidade sem midríase. O Dr. Rajagopal mostrou imagens captadas por técnicos não oftalmologistas em serviços de emergência, demonstrando que mesmo nesses contextos foi possível identificar RD leve, moderada e até alterações mais graves, como vasculites, oclusões arteriais e sinais de retinopatia infecciosa — ressaltando o valor de triagem que vai além da diabetes.
Com imagens robustas, constroem-se bancos de dados para treinamento de algoritmos. A IA, então, aprende com anotações feitas por humanos que identificam microaneurismas, exsudatos e outras lesões. Após esse processo, os algoritmos passam a classificar automaticamente os exames em três categorias: ausência de RD “referível” (ou seja, com necessidade de encaminhamento ao especialista, que seria a presença apenas de RD leve), presença de RD referível (não proliferativa moderada ou grave) e retinopatia diabética ameaçadora à visão (incluindo formas proliferativas ou com edema macular).
Quatro sistemas de IA já receberam aprovação da FDA para uso autônomo — ou seja, sem necessidade de supervisão humana na interpretação: o LumineticsCore (anteriormente IDx-DR), aprovado em 2018; o EyeArt, aprovado em 2020; e o AEYE-DS, aprovado em 2022, com acréscimo em 2024 do Aurora AEYE. Todos eles operam com câmeras não midriáticas e fornecem relatórios diretos ao médico e ao paciente, sinalizados por cores (verde para exames normais e vermelho para casos de atenção), o que facilita a compreensão e favorece o engajamento.
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Em termos de desempenho técnico, os dados apresentados foram contundentes. Os sistemas apresentam sensibilidade próxima a 98-100% para detecção de RD ameaçadora à visão e cerca de 90% para RD referível, quando comparados à leitura de imagens por especialistas. Um estudo independente do sistema de saúde norte-americano (VA) confirmou esse desempenho: os algoritmos igualaram ou superaram os especialistas humanos em precisão diagnóstica. Um achado marcante foi apresentado em um estudo da Universidade de Illinois: enquanto oftalmologistas não especialistas deixavam de detectar cerca de 80% dos casos de RD leve a moderada ao realizar exames diretos, os sistemas baseados em IA apresentaram erro inferior a 5%.
Mas talvez o resultado mais impactante da palestra tenha vindo da experiência real na própria instituição do Dr. Rajagopal. No estudo WUSTL ARIAS, investigou-se se a implementação da IA no ponto de cuidado — isto é, no próprio consultório de atenção primária — seria capaz de alterar o comportamento dos pacientes. Antes da implementação do sistema, apenas 18,7% dos pacientes triados compareciam posteriormente à consulta oftalmológica especializada. Após a instalação do sistema com IA, essa taxa subiu para 55,4%, um salto significativo, com p < 0,0001. E mais: aqueles que compareceram eram, em sua maioria, os que de fato necessitavam de tratamento. A triagem com IA, portanto, além de ampliar a adesão, aprimora a eficiência do sistema de saúde ao direcionar corretamente os recursos.
Ao final, o palestrante trouxe uma reflexão crítica. Apesar da tecnologia estar disponível, eficaz e com reembolso já estabelecido nos EUA (e significativamente mais barato que uma consulta apenas para avaliação e rastreio de retinopatia), sua adoção permanece limitada. O desafio agora não está mais na acurácia dos algoritmos, mas na superação de barreiras institucionais, de fluxo e aceitação.
Da eficácia à realidade: Os desafios práticos de implementação na atenção primária
Após a explanação inicial do Dr. Rithwick Rajagopal sobre a precisão e o potencial transformador dos sistemas de inteligência artificial (IA) aplicados ao rastreamento da retinopatia diabética (RD), coube à Dra. Roomasa Channa a missão de trazer os dados para o mundo real e aplicabilidade dessas tecnologias, especialmente nas unidades de atenção primária — onde, de fato, a maioria dos pacientes com diabetes é atendida.
A palestrante iniciou destacando o descompasso estrutural entre a necessidade crescente de rastreamento oftalmológico e a disponibilidade de profissionais qualificados, sobretudo em áreas rurais e centros de saúde voltados a populações socialmente vulneráveis. A proposta central: levar a triagem de RD diretamente para o local onde o paciente com diabetes já está — o consultório do médico da família ou do endocrinologista — com apoio da IA.
Embora a eficácia técnica dos sistemas de IA esteja bem estabelecida por diversos estudos — como os apresentados anteriormente por Rajagopal — a Dra. Channa foi enfática ao afirmar que os maiores desafios agora são logísticos, operacionais e financeiros. Na prática, integrar essa ferramenta a um ambiente de atenção primária sobrecarregado não é trivial. Preocupações com segurança, ética, custo, viabilidade e impacto no fluxo de trabalho emergem como barreiras consistentes.
A palestrante apresentou dados que confirmam a baixa penetração desses sistemas nos Estados Unidos: apesar da aprovação regulatória e da disponibilidade de reembolso, o número de exames realizados com IA ainda é pequeno e concentrado em áreas urbanas e de maior renda — justamente o oposto das regiões que mais carecem de assistência oftalmológica. Em uma pesquisa conduzida com mais de 100 líderes clínicos, observou-se que, embora 68% das unidades oferecessem algum tipo de triagem ocular, o uso de IA ainda é marginal. A maioria utiliza câmeras que enviam imagens para interpretação remota por especialistas, e dentre os que dispõem de câmeras, menos da metade das imagens captadas é efetivamente usada para triagem. Além disso, muitos profissionais demonstraram desconforto com a dilatação pupilar, ainda que evidências demonstrem sua segurança e importância para melhorar a qualidade das imagens para interpretação humana.
Um dos pontos mais importantes levantados foi o alto percentual de imagens não diagnósticas em estudos de mundo real com até 29% em alguns casos — o que eleva substancialmente a taxa de encaminhamentos desnecessários. Comparado aos 5% de imagens não válidas em ensaios clínicos, esse dado chamou atenção. A causa parece estar na ausência de dilatação pupilar de rotina. A Dra. Channa reforçou que, ao contrário do que se pratica fora dos EUA, nos serviços norte-americanos ainda há resistência à midríase, apesar de diretrizes de segurança como as recentemente publicadas pela Academia Americana de Oftalmologia. O uso de dispositivos de IA que não necessitam de midríase para análise pode ser um ponto fundamental para a redução de encaminhamentos desnecessários e melhora da performance no rastreio como um todo.
Outro destaque foram os custos ligados às câmeras e a dificuldade de faturamento, especialmente nos atendimentos cobertos por programas públicos como o Medicaid. A falta de seguimento também foi mencionada como um ponto crítico. Mesmo quando a triagem é feita corretamente, se os pacientes não forem encaminhados e tratados de forma adequada, o esforço se torna inócuo. A palestrante ressaltou o papel do programa EyeCare America, que oferece tratamento gratuito a pacientes subatendidos, e destacou a importância de utilizar a IA como ferramenta de identificação de casos prioritários.
O que podemos aprender com esta sessão e como ela influencia nossa prática clínica?
A sessão apresentada no ADA 2025 evidencia que a inteligência artificial já não é mais uma promessa futura — é uma solução presente e validada, com resultados superiores ao exame clínico convencional e impacto positivo na adesão dos pacientes ao cuidado oftalmológico.
Por outro lado, ainda estamos distantes de sua implementação plena. A falta de infraestrutura, o desconhecimento das ferramentas disponíveis, as dificuldades logísticas e a fragmentação do seguimento são barreiras que precisam ser enfrentadas com decisão política, investimento público e modelos assistenciais integrados.
Para países como o Brasil, com baixa cobertura de triagem de RD e grandes desigualdades regionais, os aprendizados apresentados nesta sessão são de altíssimo valor. A integração de sistemas de IA no SUS, principalmente em regiões sem oftalmologistas, poderia reduzir drasticamente a incidência de cegueira evitável. Mais do que isso: representaria um passo importante rumo à equidade no cuidado oftalmológico de pessoas com diabetes.
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