Logotipo Afya
Anúncio
Clínica Médica14 setembro 2023

Policitemia: como abordar na consulta?

O diagnóstico da policitemia pode ser incidental, a partir de dados obtidos no hemograma, em pacientes completamente assintomáticos.

Por Leandro Lima

A policitemia (ou eritrocitose) é definida pelo aumento do éritron, caracterizado pelo conjunto das células eritroides. O hemograma é uma ferramenta útil de triagem, a partir da análise da hemoglobina e hematócrito, conforme demonstrado na tabela abaixo.  

Saiba mais: Síndrome antifosfolípide: tudo o que o clínico precisa saber

Suspeita de policitemiaHomensMulheres 
Hemoglobina > 16,5 g/dL > 16 g/dL 
Hematócrito> 49% > 48% 

Em estudos populacionais, a presença de policitemia ao hemograma é de 4% em homens e 0,4% em mulheres. Entretanto, antes de prosseguir com a propedêutica, deve-se excluir a policitemia relativa, presente nos estados de hemoconcentração. Dessa forma, a simples repetição do hemograma com a orientação de adequada hidratação (30 a 40 mL/kg/dia) e após a suspensão de diuréticos ou resolução de quadros gastrointestinais agudos, por exemplo, é capaz de evitar investigações desnecessárias quando há normalização da hemoglobina e hematócrito.   

A policitemia absoluta, por sua vez, pode ser classificada em secundária, responsável pela maioria dos casos e mediada pela eritropoetina (EPO); e primária, caracterizada pela produção clonal autônoma de células eritroides pela medula óssea.   

Policitemia absoluta Primária Secundária 
Eritropoetina (EPO) Inferior a < 2,9 mU/mLSuperior a 15,1 mU/mL 

Em relação ao mecanismo, as policitemias secundárias podem ser subdivididas da seguinte forma:  

Mecanismos da policitemia secundária 
Hipóxia generalizada Tabagismo, intoxicação por monóxido de carbono, pneumopatias hipoxêmicas, SAHOS, cardiopatias congênitas cianóticas e grandes altitudes.  
Hipóxia regional renal Estenose de artéria renal, hidronefrose e doença renal policística.  
Fármaco-induzida Testosterona e eritropoetina exógenas. 
Produção patológica de EPO Carcinoma de células renais, carcinoma hepatocelular, hemangioblastoma cerebelar, leiomiomas uterinos, carcinomas de paratireoide e meningioma. 
Miscelânea Pós-transplante renal 

Entre as causas primárias de policitemia, a grande protagonista é a policitemia vera (PV), uma doença mieloproliferativa decorrente de mutação com ganho de função do gene JAK2, cuja incidência e prevalência é de 0,84 e 22 casos por 100.000 habitantes, respectivamente.  

Outras condições menos frequentes, mas que devem ser investigadas antes de se atribuir à policitemia a natureza idiopática, são as hemoglobinopatias de alta afinidade pelo oxigênio, mutações dos receptores da EPO e alterações nas vias moleculares de detecção do oxigênio (O2). Nesses casos, o acometimento em idade precoce e histórico familiar positivo reforçam a suspeita.  

Veja ainda: Principais fatores de risco de carcinoma hepatocelular

policitemia  

Manifestações clínicas, entrevista médica e exame físico  

O diagnóstico da policitemia pode ser incidental, a partir de dados obtidos no hemograma, em pacientes completamente assintomáticos. Entretanto, em até 15% dos casos, a apresentação inicial já envolve a presença de complicações trombóticas arteriais ou venosas, muitas vezes em sítios não usuais, como a vasculatura esplâncnica ou cerebral.   

Os sintomas constitucionais e a síndrome de hiperviscosidade, com cefaleia, turvação visual e pré-síncope, devem ser interrogados, bem como o prurido aquarético e a eritromelalgia (eritema e queimação, especialmente em mãos).    

O exame físico pode elucidar esplenomegalia nas policitemias primárias ou alterações relacionadas às condições de base nas policitemias secundárias. Nesse cenário, é importante se esmerar na avaliação do sistema cardiovascular, respiratório e abdominal.   

A saturação de oxigênio (SpO2) inferior a 92% na oximetria de pulso sugere a hipoxemia enquanto mecanismo da policitemia. Cabe a ressalva de que a SpO2 frequentemente é normal em pacientes com SAHOS durante a vigília e encontra-se falsamente elevada na carboxi-hemoglobinemia e hemoglobinopatias com alta afinidade pelo oxigênio.  

A investigação da policitemia  

Nas policitemias primárias o hemograma pode demonstrar, além das alterações do eritrograma, a presença de leucococitose e trombocitose, geralmente de leve intensidade.   

Em virtude da expansão eritroide, é comum a presença de ferropenia, expressa por microcitose e ferritina sérica inferior a 40 ng/mL. Em alguns casos a ferropenia é capaz de embotar a resposta eritroide, normalizando a hematimetria, enquanto acentua a trombocitose, quando se impõe o diagnóstico diferencial entre trombocitose essencial e policitemia vera.  

A pesquisa de mutação do gene JAK2 é importante diante da suspeita de policitemia primária, em que a dosagem de EPO resultou normal e as causas secundárias foram adequadamente excluídas. Em casos de PV a positividade da pesquisa de mutação V617F do JAK2 é de 95%, acometendo prioritariamente o éxon 14 e, na minoria dos casos, o éxon 12.  

Nos casos suspeitos de PV, com EPO baixa, mas com pesquisa negativa de mutação do gene JAK2 no éxon 14, deve-se prosseguir com a pesquisa de mutação no éxon 12 e biópsia de medula óssea, que pode demonstrar hipercelularidade para a idade, panmielose e presença de megacariócitos pleomórficos e maduros. 

As causas secundárias de policitemia demandam propedêuticas adicionais que podem incluir a radiografia de tórax, ecocardiograma transtorácico, gasometrias arteriais, provas de função pulmonar, dosagem de carboxi-hemoglobina e polissonografia. Os exames de imagem do abdome e pelve são úteis para a confirmação de esplenomegalia, bem como elucidar massas produtoras de EPO e demonstrar alterações estruturais renais. A neuroimagem se destaca na investigação de meningioma e hemangioblastoma cerebelar.  

As intervenções na policitemia primária  

Os principais objetivos do tratamento da policitemia primária são a redução do risco de eventos trombóticos e atenuação dos sintomas. Infelizmente, a terapia vigente é incapaz de reduzir o risco de progressão para mielofibrose e leucemia aguda. Os indivíduos com PV devem ser estratificados quanto ao risco com base na idade e presença de eventos trombóticos:  

Estratificação de risco na policitemia vera 

Idade acima de 65 anos?

Histórico de eventos trombóticos prévios?

Fatores de risco Taxa de eventos cardiovasculares por 100 pessoas-ano 
0 2,5 
1 5 
2 10,9 

A mortalidade cardiovascular entre os pacientes com PV alcança 45%. Logo, é fundamental a implementação de medidas que atenuem o risco cardiovascular global, como adequado controle da hipertensão arterial, diabetes mellitus e dislipidemia, além de incentivo à prática regular de exercícios físicos, cessação do tabagismo e controle da obesidade.  

A profilaxia de eventos trombóticos se dá com o emprego de doses baixas de ácido acetilsalicílico (AAS 100 mg/dia) e flebotomias com alvo de hematócrito inferior a 45%. O AAS se associa à redução do risco de eventos cardiovasculares maiores, tromboembólicos e mortalidade da ordem de 60%; enquanto as flebotomias se associam à redução superior a 3 vezes da mortalidade cardiovascular ou incidência de eventos trombóticos maiores.    

Os pacientes com PV de alto risco também devem receber terapia citorredutora, com destaque para a hidroxiureia. Trata-se de um quimioterápico antimetabólico, com potencial de redução de eventos trombóticos em 50% quando comparado às flebotomias isoladas. A dose deve ser titulada com alvo na remissão periférica, objetivando-se hematócrito inferior a 45%, plaquetas inferiores a 400.000 e global de leucócitos inferior a 10.000/mm³.  Entre os seus eventos adversos, os principais são as citopenias e as úlceras orais e em membros inferiores.   

O interferon-peguilado alfa representa uma alternativa segura na gestação, com potencial de induzir à remissão molecular. Atualmente, contamos com a possibilidade de inibição oral da JAK1 e JAK2 pelo Ruxolitinibe, agente de segunda linha para casos refratários ou intolerantes à hidroxiureia, que se associa a maior taxa de reversão de esplenomegalia, citopenias e resolução do prurido.  

As intervenções na policitemia secundária  

O tratamento da policitemia secundária envolve prioritariamente o controle das condições de base: oxigenoterapia domiciliar nas pneumopatias hipoxêmicas e CPAP na SAHOS, por exemplo. As flebotomias devem ser reservadas para os casos sintomáticos e com policitemia refratária ao tratamento das causas de base, por não apresentar evidências claras de benefícios. 

Na policitemia secundária ao transplante renal, recomenda-se o emprego de inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) ou antagonistas dos receptores da bradicinina (BRA).  

Leia também: Quais são as principais medidas de acurácia dos exames laboratoriais?

Mensagens práticas 

  • A policitemia é definida como aumento do éritron, devendo ser diferenciada da policitemia relativa, característica dos estados de hemoconcentração. 
  • O hemograma é o principal instrumento de triagem, sendo considerados anormais hemoglobina superior a 16,5 e 16 g/dL e hematócrito superior a 49 e 48% para homens e mulheres, respectivamente. 
  • A policitemia pode ser classificada em primária, relacionada à produção clonal autônoma pela medula óssea, com destaque para a policitemia vera (PV); e secundária, com mecanismos relacionados à hipoxemia generalizada e regional, fármaco-induzida e produção patológica de eritropoetina (EPO). 
  • As manifestações clínicas são representadas pelos eventos trombóticos venosos e arteriais, síndrome de hiperviscosidade, sintomas constitutivos e vasomotores, com destaque para o prurido aquarético e a eritromelalgia.
  • Os principais instrumentos para a investigação da policitemia incluem, além da entrevista e exame físico, o hemograma, saturação de oxigênio (SpO2), dosagem de EPO e pesquisa de mutação do gene JAK2. A biópsia de medula óssea é reservada para os casos duvidosos ou com suspeita de complicações, como a mielofibrose ou leucemia aguda.  
  • As intervenções terapêuticas destinadas à PV incluem o uso de ácido acetilsalicílico, flebotomias e terapia citorredutora, com destaque para a hidroxiureia.  
Anúncio

Assine nossa newsletter

Aproveite o benefício de manter-se atualizado sem esforço.

Ao assinar a newsletter, você está de acordo com a Política de Privacidade.

Como você avalia este conteúdo?

Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.

Referências bibliográficas

Compartilhar artigo