O mieloma múltiplo caracteriza-se por proliferação clonal de plasmócitos e consequentes produção e secreção de imunoglobulina monoclonal (proteína M). Representa cerca de 10% das neoplasias hematológicas e é discretamente mais frequente em homens do que mulheres (1,5:1), sendo duas vezes mais comum em afrodescendentes. A mediana de idade ao diagnóstico é de 65 anos.
Diagnóstico do mieloma múltiplo
Os critérios diagnósticos foram revisados em 2014 pelo International Myeloma Working Group (IMWG). Para diagnóstico, é necessária a presença de dois critérios:
- Plasmocitose medular ≥ 10% ou confirmação histopatológica de plasmocitoma (seja ósseo, seja extramedular);
- Evento definidor de doença.
Os eventos definidores de doença são:
- Lesão de órgão-alvo (CRAB): hipercalcemia (cálcio > 1 mg/dL em relação ao limite superior de normalidade ou > 11 mg/dL), disfunção renal (clearance de creatinina < 40 mL/minuto ou creatinina > 2 mg/dL), anemia (hemoglobina < 2 g/dL em relação ao limite inferior de normalidade ou < 10 g/dL) e/ou lesão óssea (uma ou mais lesões osteolíticas visualizadas em radiografia, tomografia ou PET);
- Plasmocitose medular ≥ 60%;
- Relação de cadeia leve livre ≥ 100;
- Presença de mais de uma lesão focal de, no mínimo, 5 mm à ressonância magnética.
Saiba mais: Novos protocolos para mieloma múltiplo: como escolher o tratamento?
Estratificação de risco
Para avaliação prognóstica ao diagnóstico, deve-se levar em consideração:
- Características do paciente – ex.: idade superior a 70 anos, presença de comorbidades e performance status ruim associam-se a pior prognóstico;
- Carga tumoral (estadiamento) – pode-se utilizar o International Staging System (ISS), que considera os níveis de beta-2 microglobulina e albumina, ou o escore Durie-Salmon (DSS), que considera pico monoclonal no sangue e na urina, nível de hemoglobina, valor de cálcio sérico, número de lesões osteolíticas à radiografia e função renal;
- Biologia da doença (principalmente citogenética).
O ISS revisado é uma ferramenta de estratificação de risco que avalia carga tumoral (ISS) e biologia da doença (anormalidades citogenéticas e valor de LDH):
- Estágio I: beta-2 microglobulina < 3,5 g/dL + albumina ≥ 3,5 g/dL + LDH normal + ausência de anormalidades citogenéticas de alto risco [t(4;14), t(14;16) ou del(17p)];
- Estágio II: não preenche critérios para estágios I ou III;
- Estágio III: beta-2 microglobulina ≥ 5,5 g/dL + presença de anormalidade(s) citogenética(s) de alto risco [t(4;14), t(14;16) ou del(17p)].
Vale ressaltar que outras alterações citogenéticas não abordadas no ISS-R também têm impacto prognóstico:
- Risco favorável: trissomias, t(11;14), t(6;14);
- Risco desfavorável: t(14;20), +(1q).
Durante a evolução do paciente, a resposta ao tratamento também tem grande valor prognóstico: casos de refratariedade ou recaída precoce após terapia de primeira linha são considerados de alto risco.
Tratamento de primeira linha
O desfecho dos pacientes com mieloma múltiplo vem melhorando significativamente nos últimos anos, o que se deve tanto ao desenvolvimento de novas drogas como ao maior conhecimento da biologia da doença.
A escolha do esquema quimioterápico depende de alguns fatores, como perfil do paciente (ex.: impossibilidade de descolamento até o hospital semanalmente para administração de drogas endovenosas), estratificação de risco (risco standard x alto risco) e disponibilidade das drogas (principalmente nos serviços públicos).
Pode-se dividir os pacientes em quatro grupos:
- Elegíveis ao transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas, com risco standard: recomenda-se, na maioria dos casos, esquema VRd (bortezomibe, lenalidomida e dexametasona) por 3-4 ciclos + transplante + manutenção com lenalidomida. Uma alternativa para pacientes que toleram e respondem bem ao tratamento seria postergar o transplante para primeira recaída; dessa forma, seriam feitos 8-12 ciclos de VRd, seguidos de manutenção com lenalidomida;
- Elegíveis ao transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas, com alto risco: recomenda-se, na maioria dos casos, esquema Dara-VRd (daratumumabe, bortezomibe, lenalidomida e dexametasona) por 3-4 ciclos + transplante + manutenção com bortezomibe;
- Inelegíveis ao transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas, com risco standard: recomenda-se, na maioria dos casos, esquema VRd (bortezomibe, lenalidomida e dexametasona) por 8-12 ciclos + manutenção com lenalidomida. Uma alternativa seria o esquema DRd (daratumumabe, lenalidomida e dexametasona) até progressão de doença;
- Inelegíveis ao transplante autólogo de células-tronco hematopoiéticas, com alto risco: recomenda-se, na maioria dos casos, esquema VRd (bortezomibe, lenalidomida e dexametasona) por 8-12 ciclos + manutenção com bortezomibe.
Pontos importantes no tratamento de primeira linha do mieloma múltiplo:
- Deve-se considerar o transplante autólogo para todos os pacientes elegíveis, porém, no risco standard com boa resposta ao tratamento, o procedimento pode ser postergado para primeira recaída. Quando opta-se por adiar o transplante, recomenda-se que a mobilização das células seja feita após 3-4 ciclos de VRd devido à interferência da lenalidomida na coleta das células-tronco;
- Na indisponibilidade de lenalidomida ou na presença de disfunção renal aguda, pode-se fazer outro esquema com bortezomibe, como VTd (bortezomibe, talidomida e dexametasona) e VCd (bortezomibe, ciclofosfamida e dexametasona).
Doença refratária ou recaída
Fatores que influenciam na escolha terapêutica incluem:
- Tempo de remissão e resposta ao tratamento anterior: se recaída tardia após atingir resposta completa, pode-se fazer o mesmo esquema da terapia de primeira linha ou esquema similar (ex.: VRd, VCd, VTd);
- Agressividade na recaída: esquemas com múltiplas drogas são indicados na leucemia de células plasmáticas;
- Performance status do paciente: considerar transplante autólogo se paciente não tiver sido submetido previamente ou se tiver apresentado longo período de remissão após o primeiro transplante.
Referência bibliográfica:
- Rajkumar, S. Vincent. Multiple myeloma: 2020 update on diagnosis, risk‐stratification and management. American journal of hematology 95.5 (2020): 548-567.
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