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Clínica Médica17 dezembro 2024

HBV: um novo horizonte?

A cada ano mais de 1 milhão de mortes são atribuídas às complicações da HBV, como a doença hepática crônica avançada (DHCA) e o carcinoma hepatocelular
Por Leandro Lima

A infecção crônica da hepatite B (HBV) acomete mais de 3% da população mundial, um número que corresponde a mais de 250 milhões de pessoas. 

A cada ano mais de 1 milhão de mortes são atribuídas às complicações da HBV, como a doença hepática crônica avançada (DHCA) e o carcinoma hepatocelular (CHC). 

Além da imunização em massa, a ampla disponibilidade de tratamentos eficazes e acessíveis é um dos principais desafios ao enfrentamento dessa importante condição.  

Saiba mais: IAS 2024: Hepatites virais crônicas – quais as novas recomendações?

hepatite b

A “cura funcional”

Diferentemente do que nos acostumamos a ver com a hepatite C (HCV), não dispomos, por ora, de tratamentos finitos, de baixa morbidade e com elevadas taxas de cura para HBV.  

De fato, falar em cura para HBV é, certamente, uma tarefa muito mais complexa! 

Mesmo os indivíduos com critérios de cura sorológica após a exposição ao vírus selvagem (Anti-HBc total e anti-HBs positivos, com HBsAg negativo), persistem, por toda a vida, com o DNA viral quiescente no interior dos seus hepatócitos, sob a forma de DNA covalente circular fechado (DNAccc) ou integrado ao DNA do hospedeiro.   

Nos dias de hoje, portanto, temos como alvo terapêutico um desfecho mais sutil e realista: a “cura funcional” – que é caracterizada pela perda do HBsAg, positivação do anti-HBs e supressão da carga viral do HBV-DNA. 

Tal desfecho, embora pareça limitado, já é capaz de eliminar o risco de progressão da fibrose hepática e reduzir, de maneira significativa, o risco evolutivo para CHC entre aqueles pacientes que ainda não desenvolveram a cirrose.  

Quais as modalidades de tratamento disponíveis para HBV na atualidade?

O arsenal terapêutico da HBV conta com duas modalidades:

  • Os análogos nucleosídeos/nucleotídeos (AN), administrados pela via oral para uso diário contínuo (entecavir e tenofovir), inibem a síntese do DNA viral e suprimem o HBV-DNA em sangue periférico, mas não eliminam os antígenos virais, como o HBsAg;  
  • E o peginterferon alfa-2a, administrado pela via subcutânea, de forma semanal, por um período finito de 48 semanas.  

A baixa probabilidade de “cura funcional” com as terapias vigentes, todavia, traz consigo a demanda por novas abordagens. 

O estudo PIRANGA 

O estudo controlado randomizado (RCT) multicêntrico de fase 2 intitulado Piranga, publicado em dezembro de 2024 no NEJM, avaliou o impacto de estratégias terapêuticas finitas, baseadas em xalnesiran em monoterapia ou combinado aos imunomoduladores.  

O RCT foi conduzido entre julho/2020 e outubro/2023 e incluiu quase 160 pacientes acompanhados por 2 anos, sendo o primeiro ano destinado às intervenções e o segundo ao acompanhamento.  

A população 

O cálculo amostral objetivou o poder estatístico de 78% para a detecção de uma diferença absoluta de 30% entre o grupo do xalnesiran e os comparadores.  

Foram elegíveis indivíduos entre 18 e 65 anos, com infecção crônica pelo HBV e em uso de AN (entecavir ou tenofovir) por ao menos 1 ano e com supressão virológica documentada (HBV-DNA < 20 UI/mL).  

Os principais critérios de exclusão foram as coinfecções (HCV, HDV e HIV), fibrose avançada (≥ F3 à biópsia ou ≥7,4 kPa à elastografia), cirrose estabelecida ou diagnóstico de CHC precedendo a triagem. 

A média da idade foi de 40 anos, com predomínio do sexo masculino (82,5%) e da população asiática (94%). Cerca de metade dos pacientes apresentava HBsAg inferior a 1.000 UI/mL no momento da triagem.   

As intervenções 

O xalnesiran, administrado pela via subcutânea a cada 4 semanas, é uma pequena molécula de interferência de RNA que atua sobre a região S do genoma do HBV, responsável pela produção de antígenos da superfície do vírus. 

O mecanismo de ação é pautado na ação do complexo de silenciamento induzido por RNA (RISC), que degrada o RNA mensageiro viral, suprimindo a sua transcrição, com efeitos que se estendem também ao DNAccc e ao HBV-DNA já integrado ao genoma do hospedeiro.  

Os imunomoduladores se propõem a restaurar a resposta imune inata e adaptativa contra o HBV, tendo sido avaliadas duas opções: 

  • O peginterferon alfa-2,  que já é aprovado para o tratamento de infecção crônica pelo HBV por 48 semanas, apresenta taxa de cura superior ao tratamento padrão com AN, mas à custa de efeitos colaterais importantes, como fadiga, emagrecimento, citopenias, alteração do humor e sintomas gripais. A sua via de administração é a subcutânea com frequência semanal.  
  • O ruzotolimod, por sua vez, é um agonista do TLR7 (toll-like receptor 7) que atua no processo de reconhecimento de padrões, liberando citocinas que ativam as células NK, células T e células dendríticas hepatocitárias. O seu perfil de tolerância é mais favorável do que o peginterferon alfa-2 e tem como vantagem a administração oral, em dias alternados.  

Os desfechos  

O desfecho primário analisado foi a perda do HBsAg (< 0,05 UI/mL) em 24 semanas após o fim do tratamento.  

Os desfechos secundários incluíram, entre outros, a perda do HBsAg em 12 e 48 semanas, soroconversão do anti-HBs e taxa de HBV-DNA < 10 UI/mL. 

Os resultados 

O dado mais relevante do estudo, compilado na tabela abaixo, é a elevada taxa de perda do HBsAg entre os pacientes expostos à terapia combinada entre o antiviral xalnesiran e a terapia imunomoduladora, sobretudo com o emprego do peginterferon alfa-2a. 

 

Grupo  

Intervenção 

Perda do HBsAg (IC 95%) 

Soroconversão do Anti-HBs 

Eventos adversos grau 3/4  

1 (N = 30) 

 

 

 

Análogos nucleotídeos/ nucleosídeos 

 

Xalnesiran1 100 mg 

7%  

3% 

17% 

2 (N = 30) 

Xalnesiran 200 mg 

3% 

0% 

10% 

3 (N = 34) 

Xalnesiran 200 mg +  

Ruzotolimod2 150 mg  

12% 

3% 

18% 

4 (N = 30) 

Xalnesiran 200 mg +  

Peginterferon alfa-2a 3 180 μg 

23% 

20% 

50% 

5 (N = 35) 

Análogos nucleotídeos/nucleosídeos isoladamente 

0% 

0% 

6% 

  1. Xalnesiran foi administrado pela via subcutânea, a cada 4 semanas, por 48 semanas; 
  1. Ruzotolimod foi administrado por via oral em dias alternados entre as semanas 13 e 24 e entre as semanas 37 e 48; 
  1. Peginterferon alfa-2a foi administrado pela via subcutânea, a cada semana, por 48 semanas. 

 

Um detalhe muito relevante foi o da que a perda do HBsAg, acompanhada ou não por soroconversão (viragem do anti-HBs), foi limitada àqueles indivíduos com HBsAg inicial em valores inferiores a 1.000 UI/mL, um evento prognóstico sabidamente reconhecido para a perda do HBsAg. 

O principal evento adverso das intervenções foi a elevação de transaminases, que ocorreu em 13% dos pacientes do grupo 4, que também se destacou pela maior taxa de interrupção do tratamento. Ressalta-se que não houve nenhum evento de disfunção hepática nem nenhuma fatalidade no presente estudo. 

A proposta de um tratamento finito foi condicionada ao atendimento dos critérios de interrupção dos AN, entre os quais ALT < 1,25 vezes o limite superior da normalidade (LSN), HBV-DNA < 20 UI/mL, HBeAg não reator e perda do HBsAg, com o objetivo de angariar segurança contra os flares potencialmente graves da infecção.  

Atendendo aos pré-requisitos, apenas um terço dos pacientes teve o tratamento totalmente interrompido, sendo que a recaída virológica, com HBV-DNA > 2.000 UI/mL, foi observada em 48%; e a recaída clínica, que combina ao critério de recaída virológica o aumento de ALT além de 2 vezes o LSN, foi observada em 8%, que são dados preocupantes e demonstram a necessidade de um acompanhamento próximo desses pacientes.  

Outro aspecto notável foi o decaimento da durabilidade da resposta da perda do HBsAg: 78% para 56% após 24 e 48 semanas do término do tratamento, respectivamente, fato que leva ao questionamento se essas intervenções atendem, verdadeiramente, à proposta de tratamento finito.  

Leia também: Profilaxia de hepatite B em terapias imunossupressoras

As limitações 

As principais limitações do estudo foram a pequena população avaliada em cada braço de intervenção; a disparidade representativa do sexo masculino e da população asiática, que são claros limitantes da generalização dos resultados; a exclusão de pacientes com fibrose avançada, que priva de informações relevantes para os casos mais avançados; e a exigência de supressão virológica induzida por AN por 1 ano, impedindo que as novas estratégias pudessem ser testadas em casos de resistência viral.   

 Conclusão e Mensagens práticas 

  • A terapia combinada de antivirais e imunomoduladores é promissora no tratamento da infecção crônica pelo HBV. 
  • O efeito sinérgico dessas modalidades terapêuticas amplifica as chances de cura funcional, um desfecho extremamente importante para o risco de progressão da fibrose hepática e evolução para carcinoma hepatocelular.  
  • Os eventos adversos relevantes, grau 3 ou 4, não foram incomuns com a terapia combinada.  
  • As principais dúvidas a serem sanadas em futuros estudos remetem à preocupação quanto ao decaimento da resposta de perda do HBsAg ao longo das semanas e ao papel da terapia combinada entre indivíduos com níveis elevados de HBsAg (> 1.000 UI/mL), um sabido preditor de mau prognóstico para a “cura funcional”. 

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Referências bibliográficas

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