A escolha criteriosa de exames fecais representa um ponto crucial, porém frequentemente nebuloso, na investigação da diarreia, tanto em sua apresentação aguda quanto crônica.
Visando otimizar a prática clínica de clínicos e gastroenterologistas, este guia destaca os aspectos mais relevantes de um artigo objetivo publicado no American Journal of Gastroenterology em abril de 2025.
Diarreia aguda
Em grande parte dos casos de diarreia aguda, a investigação laboratorial das fezes se mostra desnecessária, especialmente quando causas evidentes, como o uso abusivo de laxantes ou efeitos colaterais de medicamentos, podem ser identificadas.
A coleta de amostra fecal na diarreia aguda torna-se relevante mediante os seguintes cenários:
- Persistência de evacuações frequentes (≥ 3 por dia) por mais de uma semana.
- Quadros moderados a graves que cursam com desidratação, hipotensão postural, choque hipovolêmico ou distúrbios eletrolíticos.
- Disenteria, caracterizada pela presença de fezes mucossanguinolentas, febre e sinais de toxemia.
No contexto nosocomial, particularmente em pacientes fragilizados, imunossuprimidos ou exposição recente a antibióticos, a infecção por Clostridioides difficile (ICD) emerge como uma etiologia primordial a ser excluída, sendo confirmada em aproximadamente um terço dos casos.
Embora a coprocultura toxigênica e o ensaio de neutralização de células citotóxicas representem o padrão-ouro diagnóstico, sua execução prolongada (até 120 horas) inviabiliza seu uso rotineiro.
Na prática clínica, a dosagem da enzima glutamato desidrogenase (GDH) nas fezes demonstra-se uma ferramenta valiosa. Apesar de estar presente em todas as cepas de C. difficile, inclusive nas não toxigênicas (limitando sua especificidade), seu alto valor preditivo negativo permite descartar a ICD com segurança em menos de 2 horas.
Diante de um resultado positivo para GDH, a investigação subsequente deve incluir testes de amplificação de ácido nucleico (detecção da toxina B por PCR ou LAMP) e a pesquisa das toxinas A e B por imunoensaio enzimático.
Além da ICD, outras etiologias infecciosas associadas à diarreia nosocomial incluem infecções por C. perfringens, S. aureus, K. oxytoca e Candida. Nesses casos, a coprocultura pode ser útil, empregando meios de cultura específicos para Salmonella, Shigella, Campylobacter, E. coli O157, bem como a microscopia com colorações especiais, imunofluorescência, testes antigênicos e testes rápidos para bactérias, vírus e protozoários.
O limitado rendimento dos métodos microbiológicos convencionais tem sido progressivamente superado por métodos independentes de cultura, embora ainda com disponibilidade restrita:
- BD MAX® Extended Enteric Bacterial Panel: Painel molecular automatizado que utiliza extração de ácidos nucleicos e PCR em tempo real, apresentando sensibilidade superior a 95% em diarreias infecciosas agudas transmitidas por alimentos.
- Luminex xTAG® Gastrointestinal Pathogen Panel (GPP): Teste multiplex de ácidos nucleicos que avalia 14 patógenos (vírus: adenovírus, norovírus e rotavírus; parasitas: Cryptosporidium, Entamoeba histolytica e Giardia; bactérias: Campylobacter; C. difficile e toxinas A/B; E. coli O157, enterotoxigênica e produtora da toxina shiga-like; Salmonella, Shigella, Vibrio cholerae e Yersinia enterocolitica)..
- BIOFIRE® gastrointestinal (BF-GI): Teste molecular rápido baseado em amplificação de ácidos nucleicos e PCR multiplex, capaz de identificar 11 ou 22 patógenos.
Veja também: Diarreia funcional: abordagem diagnóstica e terapêutica
Diarreia crônica
Na investigação da diarreia crônica, o objetivo da propedêutica fecal reside na elucidação de etiologias inflamatórias, malabsortivas (esteatorreia), osmóticas e secretoras, sendo relevantes os seguintes exames:
- Calprotectina fecal: Um valor inferior a 50 ng/mL possui alto valor preditivo negativo para doenças inflamatórias intestinais, sendo um auxiliar valioso na suspeita de transtornos funcionais colônicos.
- Exame parasitológico de fezes com foco em Giardia: Indicado em síndromes malabsortivas.
- Gap osmolar fecal calculado pela fórmula: 290 – [2xNa + K]:
- Normal: 50-100 mOsm/kg.
- Alto (> 100 mOsm/kg): Sugestivo de diarreia osmótica, resultante da retenção de água no lúmen intestinal pela presença de solutos não absorvidos.
- Baixo (< 50 mOsm/kg): Sugestivo de diarreia secretora, causada pela secreção ativa de eletrólitos e água no intestino.
- pH fecal < 5,5: Sugere má absorção de carboidratos.
- Magnésio fecal aumentado (> 80-160 mEq/L), assim como fosfato e sulfato fecais elevados: Podem indicar o uso abusivo de laxantes.
- Gordura fecal: Valores inferiores a 14 g/dL são considerados normais; superiores a 20 g/dia sugerem disfunção pancreática; valores entre 14 e 20 g/dia são mais compatíveis com enteropatias. É crucial orientar o paciente a ingerir 100 g de gordura diariamente nos dois dias que antecedem o exame e manter essa ingestão durante todo o período de coleta (48 a 72 horas).
- Elastase-1 pancreática fecal: Útil no diagnóstico de insuficiência pancreática exócrina (IPE), pois não sofre degradação proteolítica no trato gastrointestinal. Apresenta sensibilidade entre 77% e 96% e especificidade de 88%. Valores normais (> 200 µg/g) praticamente excluem IPE em pacientes com baixa probabilidade, enquanto valores inferiores a 200 µg/g podem apresentar até 15% de resultados falso-positivos.
Conclusão e mensagens práticas
- A investigação laboratorial da diarreia, tanto aguda quanto crônica, demanda uma abordagem seletiva e criteriosa.
- Na diarreia aguda, a propedêutica fecal deve ser reservada aos quadros persistentes, graves ou com disenteria, sendo crucial a exclusão de infecção por C. difficile (ICD) em contextos nosocomiais.
- A dosagem de GDH fecal emerge como um teste rápido e eficaz para triagem de ICD, direcionando a investigação subsequente com testes de amplificação de ácidos nucleicos e pesquisa de toxinas A e B.
- Métodos moleculares inovadores prometem revolucionar o diagnóstico das diarreias infecciosas agudas, superando algumas das limitações da coprocultura tradicional.
- No cenário da diarreia crônica, a análise fecal visa desvendar mecanismos fisiopatológicos específicos, como inflamação, má absorção, alterações osmóticas ou secreção excessiva. Nesse sentido, a calprotectina fecal, o exame parasitológico, o gap osmolar fecal, o pH fecal, a dosagem de magnésio, a gordura fecal quantitativa e a elastase-1 pancreática fecal constituem ferramentas valiosas para o diagnóstico diferencial.
Take-home messages:
- Diarreia aguda: A maioria dos casos dispensa investigação laboratorial. Reserve os exames para quadros persistentes, graves ou com disenteria e priorize a exclusão de C. difficile em pacientes de risco.
- GDH fecal: Um teste rápido e com alto valor preditivo negativo para ICD na diarreia aguda.
- Métodos moleculares: Representam o futuro no diagnóstico rápido e sensível das diarreias infecciosas agudas.
- Diarreia crônica: A investigação fecal direciona-se à identificação do mecanismo fisiopatológico subjacente (inflamatório, malabsortivo, osmótico ou secretor).
- Calprotectina fecal: Útil para descartar doença inflamatória intestinal em casos de diarreia crônica.
- Gordura fecal quantitativa: Essencial na avaliação de esteatorreia, com preparo adequado do paciente crucial para a acurácia do teste.
- Elastase-1 fecal: Ferramenta importante no diagnóstico de insuficiência pancreática exócrina.
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