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Medicina de Emergência27 abril 2020

Traqueostomia na pandemia pelo coronavírus: cuidados e recomendações internacionais

Uma estratégia prioritária no coronavírus é o controle da transmissão e prevenção de contaminação dos profissionais, que se expõem na traqueostomia.

Uma das estratégias prioritárias no contexto da atual pandemia é o controle da transmissão pessoa a pessoa do vírus, incluindo a prevenção de contaminação cruzada dos profissionais de saúde, os quais já chegaram a representar um quinto de todos os infectados durante a epidemia de SARS em 2003.

A infectividade do SARS-CoV-2 é elevada, superando inclusive o H1N1 e SARS, ocorrendo sua transmissão por contato, gotículas e aerossóis. Nesse sentido há uma grande preocupação relacionada a qualquer procedimento capaz de gerar aerossóis, os quais normalmente se relacionam à manipulação das vias aéreas dos enfermos. Como exemplos podemos citar a intubação orotraqueal, traqueostomia, broncoscopia, ventilação com pressão positiva não invasiva e ventilação com máscara.

Dos pacientes infectados uma fração notável (9.8 a 15.2%) irá necessitar de ventilação mecânica invasiva ou, em menor proporção, membrana de oxigenação extracorpórea (ECMO). A necessidade de suporte ventilatório costuma ser prolongada, em média 21 dias, portanto, muitos serão candidatos à traqueostomia, normalmente no contexto semieletivo. Nesse sentido, o papel da equipe também se faz essencial no manejo dos infectados, com possibilidade real de exposição, aumentando o risco de infecção em até quatro vezes ao realizar a traqueostomia.

Traqueostomia na pandemia do novo coronavírus

Na literatura há diversos consensos relacionados aos cuidados no paciente que necessitará de uma via aérea cirúrgica, visto que, se inadequadamente manejado, irá impor risco a toda equipe de cuidado e outros pacientes.

Muitos dos dados foram obtidos por correlação com epidemias prévias e baseados nas experiências recentes e contínuas dos serviços envolvidos no cuidado dos pacientes com Covid-19. Aqui compilamos as principais informações:

Fase 1: decisão

  • Não há indicação da realização de traqueostomia precoce nestes pacientes, apesar dos sabidos benefícios da ventilação por traqueostomia definidos em outros contextos;
  • O tempo ideal para a realização do procedimento deve basear-se na discussão entre a equipe médica, considerando os riscos de contaminação do ambiente, profissionais, gravidade bem como prognóstico do paciente;
  • As indicações do procedimento não diferem das habituais;
  • Não deve ser indicada em contexto de via aérea difícil (paciente não ventila/ não intuba), optando-se nessa situação pela cricotireoidostomia cirúrgica ou por punção em seu lugar;
  • Traqueostomia deve ser indicada apenas para pacientes já intubados.

Leia também: Quais cânulas de traqueostomia podem ser usadas em pediatria?

Fase 2: preparo

  • Uma vez definida a indicação do procedimento, seu preparo é essencial, idealmente sendo realizado por uma equipe especializada nesse cuidado, bem treinada e com coesão a protocolos previamente estabelecidos;
  • O local de sua realização é variável na literatura. Alguns defendem o centro cirúrgico como primeira opção pela disponibilidade de materiais, espaço físico adequado, maior disponibilidade de pressão negativa no ambiente. Idealmente deve possuir fluxo de transporte único do paciente infectado, sala própria para COVID-19 e isolamento das demais salas cirúrgicas. As desvantagens incluem a necessidade de transporte do paciente e sua desconexão mais frequente do sistema de ventilação. Outros defendem a realização no próprio leito de terapia intensiva. Mais uma vez a disponibilidade de pressão negativa no leito é o cenário ideal, todavia, não havendo, deve-se no mínimo adotar o isolamento do leito (sala com janelas e portas fechadas), sem pressão positiva local. Limitações nesse ambiente incluem o espaço reduzido, posicionamento do doente muitas vezes subótimo e necessidade de mobilização de equipamentos cirúrgicos essenciais;
  • O material a ser utilizado para a cirurgia deve ser idealmente preparado e checado previamente, preferencialmente armazenado de forma conjunta, em especial quando for realizada beira-leito;
  • Deve-se disponibilizar o material padrão para a traqueostomia, juntamente de diversas cânulas traqueais balonadas não fenestradas, além de foco de luz adequado;
  • Os materiais utilizados deverão ser preferencialmente descartáveis;
  • A equipe envolvida deve estar adequadamente treinada para a paramentação / desparamentação conforme os protocolos locais.

Veja mais: E quando um paciente com coronavírus necessita de cirurgia?

Fase 3: procedimento

  • O primeiro passo é a revisão dos passos, conversa prévia entre toda a equipe (visto que os equipamentos de proteção – EPI podem dificultar a comunicação), conferência adicional dos materiais necessários e disponibilidade de todos EPI;
  • Deve-se limitar a equipe envolvida ao número mínimo necessário, todos com a expertise adequada. Dois cirurgiões bastam;
  • O EPI indicados para os profissionais envolvidos devem incluir: luvas (proteção dupla), óculos de proteção, proteção facial (face-shield), máscara N95/ PPF3/ PPF2, avental estéril impermeável, gorro descartável, propés. Locais como Canadá, Singapura e Hong-Kong ainda adicionam o uso de respiradores mecânicos purificadores de ar (PAPRs);
  • Na ausência de aventais impermeáveis, pode-se utilizar uma proteção com vestimenta plástica abaixo do avental cirúrgico;
  • A equipe cirúrgica deve estar vestida antes da paramentação com roupas específicas (‘scrubs’) e não vestimentas usuais;
  • Toda a paramentação deve seguir protocolos da CCIH do hospital e deve ser realizada, preferencialmente, em uma antecâmara antes de acessar o leito do paciente;
  • Alguns protocolos consideram a traqueostomia percutânea como primeira opção como o francês. Não há evidências suficientes, como ressaltado pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica (SBCT), para sua contraindicação ou indicação;
  • Considerando a menor disponibilidade, maior necessidade de manipulação das vias aéreas (broncoscopia, dilatação progressiva da via aérea), maior resistência à ventilação, conexão/ desconexões repetidas; a via percutânea possui um maior potencial de produção de aerossóis; portanto, a maioria dos consensos (incluindo o da SBCT), dão prioridade à traqueostomia cirúrgica convencional (aberta);
  • O preparo do campo cirúrgico deve isolar a área de interesse (pescoço) do restante, deixando a face do paciente recoberta pelo mesmo. Algumas inovações para o controle da contaminação foram relatadas na literatura a exemplo de Foster P et al. (Figura 1)
  • O sistema de aspiração do tubo durante o procedimento deve possuir circuito fechado e estar equipado de filtro viral. A aspiração deve ser limitada ao mínimo, já que pode produzir também aerossóis;
  • O paciente deve ser pré-oxigenado com FiO2 de 100% por 5 minutos;
  • A traqueostomia deve ser realizada sob sedação e bloqueio neuromuscular completo (curarização), especialmente durante a manipulação das cânulas na via aérea. O reflexo de tosse deve ser completamente suprimido;
  • O uso de cautério elétrico deve ser evitado, visto que a vaporização é também capaz de gerar aerossóis. A preferência deve ser por dissecção romba e medidas de hemostasia convencional com fios ou pinças hemostáticas;
  • A cânula orotraqueal a ser usada deve ser testada antes de usada;
  • Quando obtido acesso à parede anterior da traqueia, antes de realizar a incisão traqueal, alguns passos fundamentais devem ser realizados:
    • Redução da FiO2 para 21% (ar ambiente)
    • Parar a ventilação, sem desconectar o sistema, desinsuflar discretamente o balonete (cuff) e tracionar caudalmente o tubo orotraqueal, seguido de rápida hiperinsuflação do balonete para garantir o isolamento da via aérea. Tal medida visa evitar a perfuração do balonete;
    • Alguns recomendam a punção com agulha da traqueia prévia a sua incisão, seguida de injeção traqueal de lidocaína para anestesia tópica adicional (Schultz P et al.)
  • A incisão da traqueia (traqueotomia) deve ser realizada com lâmina de bisturi, realizada após cessação da ventilação (alguns recomendam a desconexão do ventilador) e desinsuflação do balonete do tubo. A parede anterior traqueia pode ainda ser suturada a pele para facilitação a inserção da cânula e cuidados pós operatórios, porém tal manobra pode aumentar o tempo cirúrgico e impor perigo adicional visto que tais pacientes muitas vezes dessaturam rapidamente;
  • Uma vez acessada a luz traqueal, o tubo deve ser recuado sob visão direta até a borda superior do estoma criado, no entanto, sem extubar o paciente;
  • Prontamente a cânula traqueal balonada não fenestrada é passada introduzida e seu balonete rapidamente insuflado;
  • É ideal a interposição de um filtro HME (de calor e umidade) entre a cânula traqueal e o circuito de ventilação;
  • A ventilação somente deve ser reiniciada após garantia da insuflação adequada da cânula e conexão adequada do sistema de ventilação em um circuito fechado;
  • O posicionamento adequado da cânula deve ser realizado por capnografia (ETCO2) ou ausculta, porém esta com risco de contaminação adicional do estetoscópio;
  • Garantir a fixação da cânula, após garantir que não há escape aéreo, com sutura à pele, sendo essa medida fundamental para evitar o deslocamento do dispositivo em especial nos pacientes que necessitarem de eventual pronação;
  • A desparamentação pós procedimento deve ser realizada de fora cuidadosa e sistemática, pois corresponde a uma das etapas com maior risco de contaminação da equipe após a traqueotomia. Pode ser até mesmo auxiliada por um colega paramentado que observa todas as etapas buscando falhas no protocolo (“buddy check”). Deve haver uma área física específica para essa etapa;
  • Encerrada a traqueostomia, deve-se realizar a descontaminação da sala / leito. Alguns orientam a espera de 20 minutos antes de seu início.
Figura 1. “Câmara de traqueostomia” permitindo isolamento adicional do paciente da equipe cirúrgica e ambiente. Conta ainda com sistema de aspiração de ar com dois filtros HME (Foster P et al. J Am Coll Surg. 2020)

Fase 4: cuidados pós-procedimento

  • Qualquer manipulação da traqueostomia deve considerar os cuidados quanto ao risco biológico por equipe de enfermagem treinada;
  • A aspiração das vias aéreas deve ser realizada em circuito fechado com filtro viral conectado ao mesmo;
  • Deve-se atentar para o controle da pressão do balonete de forma frequente, evitando sua desinsuflação;
  • Durante qualquer manipulação do paciente, uma pessoa deve ser responsabilizada por impedir o deslocamento da cânula e consequente escape aéreo;
  • Evitar a umidificação dos circuitos de ventilação com consequente acúmulo de líquido o qual pode promover contaminação do ambiente no caso de qualquer desconexão acidental;
  • A troca da cânula somente pode ser planejada após 7 a 10 dias da operação inicial e deve incluir todo EPI, apneia e supressão do reflexo de tosse. Alguns indicam sua troca apenas após negativação viral;
  • A decanulação depende de protocolos de cada instituição. Jacob T et al. consideram o procedimento somente após a negativação viral, com o paciente internado em enfermaria e realizados testes de desinsuflação em parceria com as equipes de fisioterapia e fonoaudiologia.

CORONA-steps

Um editorial da Oral Oncology traz um interessante método que resume todos os principais passos no acrônimo CORONA-steps:

  • (C) Cover yourself: cubra-se com EPI adequado;
  • (OR) Operating Room Setting: ajustes na sala cirúrgica (plano cirúrgico, time com expertise, número limitado de pessoas, kits cirúrgicos e cânulas de diferentes tamanhos disponíveis);
  • (O) Open the trachea: abertura da traqueia (curarização, checar a saturação antes da abertura da traqueia, tração caudal do tubo e hiperinsuflação do balonete);
  • (NA) Nursing and airway management: cuidados de enfermagem e manejo das vias aéreas (aspiração segura de secreções, checagem regular da pressão do balonete, fechamento da ferida assim que possível).

Referências bibliográficas:

  • Diretoria da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica. Recomendação da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica – SBCT para realização de traqueostomias e manejo da via aérea em casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (COVID-19). 2020, disponível em https://www.sbct.org.br/recomendacoes-da-sociedade-brasileira-de-cirurgia-toracica-sbct-para-realizacao-de-traqueostomias-e-manejo-da-via-aerea-em-casos-suspeitos-ou-confirmados-de-infeccao-pelo-novo-coronavirus-c/ acesso em 23 março 2020
  • Editorial. CORONA-steps for tracheotomy in COVID-19 patients: A staff-safe method for airway management. Oral Oncology. 2020; 105: 1-3
  • Schultz P, Morvan J-B, Fakhry N, Monière S, Vergez S, Lacroix C, et al. French consensus regarding precautions during tracheostomy and post-tracheostomy care in the context of COVID-19 pandemic. Eur Ann Otorhin, Head nad Neck Dis. 2020
  • Tay JK. Surgical Considerations for Tracheostomy During the COVID-19 Pandemic – Lessons Learned From the Severe Acute Respiratory Syndrome Outbreak. JAMA Otolaryngology–Head & Neck Surgery. 2020; E1-2
  • Jacob T, Walker A, Mantelakis A, Gibbins N, Keane O. A framework for open tracheostomy in COVID-19 patients. Clinical otolaryngology. 2020
  • Harrison L, Ramsden J. Guidance for Surgical Tracheostomy and Tracheostomy Tube Change during the COVID-19 Pandemic. ENTUK. [internet]. Disponível em https://www.entuk.org/tracheostomy-guidance-during-covid-19-pandemic acesso em abril 2020
  • Foster P, Cheung T, Craft P, Baran K, Kryskow M, Knowles R, et al. Novel Approach to Reduce Transmission of COVID-19 During Tracheostomy. J Am Coll Surg. 2020; 1-3
  • Balakrishnan K, Schechtman S, Hogikyan ND, Teoh AYB, McGrath B, Brenner MJ. COVID-19 Pandemic: What Every Otolaryngologist–Head and Neck Surgeon Needs to Know for Safe Airway Management.
  • Otolaryngology– Head and Neck Surgery. 2020; 1-5
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