A residência médica é uma das etapas mais intensas da formação profissional. É o momento de consolidar conhecimentos, lidar com a prática clínica e assumir grandes responsabilidades: tudo isso sob longas jornadas, alta pressão e pouco tempo para si. Mas em meio a essa rotina, onde termina o “cansaço esperado” e começa um quadro de adoecimento mental?
De acordo com a psiquiatra Tayne Miranda, editora-médica de Psiquiatria da Afya e mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP – USP), reconhecer esse limite é essencial, e nem sempre simples.
“Um primeiro elemento que pode guiar essa reflexão é uma comparação da pessoa consigo mesma”, explica. “Na psiquiatria, usamos o padrão de funcionamento da própria pessoa para entender o que é normal e o que é patológico. Pequenas mudanças, quando acumuladas, podem sinalizar transformações profundas”, comenta.
Sinais de alerta que não devem ser ignorados
Entre os principais indícios de que o estresse ultrapassou o limite do saudável estão:
- Oscilações de humor intensas, irritabilidade e tristeza persistente;
- Perda de prazer em atividades antes prazerosas;
- Cansaço contínuo, mesmo após folgas ou fins de semana;
- Desconexão com o trabalho, perda de propósito ou desejo de desistir;
- Alterações no sono, apetite e peso;
- Dificuldade de concentração e memória;
- Aumento do consumo de álcool ou substâncias psicoativas;
- Sintomas físicos sem causa orgânica aparente;
- Sentimentos de culpa ou inutilidade.
“Um cansaço normal melhora com descanso. Quando isso não acontece, é sinal de que algo mais sério pode estar em curso”, alerta a psiquiatra.
Estrutura e cultura institucional também adoecem
Para além do esforço individual de cada residente, mudanças estruturais nas instituições formadoras são indispensáveis para prevenir o adoecimento mental.
“A medicina historicamente romantizou o sofrimento, como se fosse necessário para formar bons médicos. A privação de sono e o estresse constante ainda são vistos como provas de resistência que validam a competência profissional”, comenta a Dra. Tayne.
A carga horária oficial de 60 horas semanais já é intensa, mas frequentemente é ultrapassada. Some-se a isso a necessidade de estudar fora do expediente e, muitas vezes, buscar uma renda extra, e o resultado é um cenário de exaustão.
Outro fator crítico é a cultura hierárquica rígida, com episódios de humilhação, feedbacks constrangedores e medo de pedir ajuda. “O residente está em formação, é natural que ele erre e precise de apoio. O ambiente deveria permitir isso de forma segura e supervisionada”, reforça.
A especialista defende que os serviços cumpram a carga horária legal, capacitem preceptores para uma supervisão baseada no respeito e revisem a lógica de funcionamento que depende do trabalho excessivo do residente.
“Cuidar da saúde mental do médico é parte indissociável do cuidado com o paciente”, destaca a Tayne.
O medo de pedir ajuda
Mesmo diante do sofrimento, muitos residentes resistem em procurar ajuda psiquiátrica. O medo do estigma e das consequências na carreira ainda é forte.
“A cultura médica valoriza o heroísmo e a capacidade de suportar tudo. Procurar ajuda é visto como fraqueza, o que é um equívoco. Buscar tratamento é um ato de coragem e responsabilidade”, afirma.
Ela reforça que um médico mentalmente saudável é mais atento, empático e menos propenso a erros. “Pedir ajuda não é o oposto de ser um bom médico, é o que permite continuar sendo um”.
Mini-hábitos que fazem diferença
Embora o tempo seja escasso, pequenas práticas de autocuidado podem ajudar a preservar o bem-estar:
- Atividade física regular, mesmo em baixa frequência;
- Higiene do sono, com horários minimamente regulares;
- Hobbies e atividades fora da medicina, sem pressão por desempenho;
- Convívio social e vínculos afetivos, fundamentais para o apoio emocional.
“É evidente que a residência é um momento complicado, que existe pouco tempo e pouca energia, então é importante pensar na conhecida máxima que o feito é melhor que o perfeito. O importante é manter algum espaço para o autocuidado, por menor que seja”, conclui a psiquiatra.
Autoria

Redação Afya
Produção realizada por jornalistas da Afya, em colaboração com a equipe de editores médicos.
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