A celebração do Dia Internacional dos Povos Indígenas, comemorado em 10 de dezembro, ganha novos contornos quando histórias como a de Otávio Kaxixó, 31 anos, ganham voz. Primeiro médico formado de sua etnia pela UFMG, após ter iniciado a carreira como enfermeiro, ele representa, ao mesmo tempo, uma conquista individual e um marco coletivo. “Sonhar é possível”, diz. Sua jornada desafia a lógica histórica que excluiu estudantes indígenas do ensino superior e da produção científica.
Para seu povo, o diploma carrega um impacto simbólico profundo. Não apenas porque rompe a crença de que indígenas “não produzem ciência”, mas porque abre possibilidades antes inimagináveis. “Esse marco mostra às novas gerações que é possível chegar. A gente não tira vaga de ninguém, a gente reivindica um espaço que sempre nos foi negado”, afirma.

Desafios estruturais e o peso do pertencimento
A caminhada, porém, esteve longe de ser simples. Otávio viveu até os 15 anos em sua comunidade, onde os caminhos possíveis quase sempre se restringiam à saúde, à educação, ao trabalho para fazendeiros – muitas vezes em condições análogas à escravidão – ou à colheita. Quando entrou na universidade, descobriu outras barreiras.
“Entrar na faculdade já é difícil, mas terminar é o verdadeiro desafio”, conta. Ele enfrentou desde a falta de preparo institucional para lidar com estudantes indígenas até perguntas deslegitimadoras, como “O que você veio fazer aqui?” e “Não sabem se cuidar sozinhos?”.
Ainda assim, sua identidade e sua comunidade foram bússola. “Sempre fui muito inquieto. Queria melhorar a vida da minha família e do meu povo. A gente carrega uma mala de lutas”, diz.
Por que representatividade importa
A presença de médicos indígenas ainda é pequena no Brasil. Para Otávio, isso tem reflexos diretos na qualidade do cuidado. “A faculdade não ensina a cuidar de territórios indígenas. Cada povo tem sua forma de viver, de se relacionar com a saúde, com a doença. Não existe uma única medicina possível”, afirma. Ele defende que a pluralidade cultural seja vista como competência, não como obstáculo.
Universidade, permanência e o papel das cotas
Otávio ingressou na UFMG pelo programa de vagas suplementares destinado a estudantes indígenas, política retomada em 2019 e responsável por ampliar o acesso em 11 cursos da instituição. “As cotas são essenciais. Sem elas, eu não estaria aqui. Elas não dão privilégio; dão oportunidade”, reforça.
Mas não basta entrar: é preciso permanecer. A ausência de suporte acadêmico e emocional faz com que muitos estudantes abandonem ou se distanciem de suas raízes. “Muitos se corrompem pela pressão. Por isso representatividade importa tanto: ela cria caminhos, não exceções”, enfatiza.
Entre saberes tradicionais e biomedicina
Hoje, atuando no SUS em Nova Serrana (MG) e colaborando com lideranças indígenas, como Célia Xakriabá, na luta por um ambulatório estadual para povos originários, Otávio integra ancestralidade e ciência.
“Aprendizado nunca foi dificuldade pra gente. Se é pra mostrar autonomia, vamos aprender as mesmas ferramentas que os brancos, mas sem abandonar nossos saberes”, diz. Parte de seu atendimento é feito on-line, como forma de democratizar o acesso a quem não pode se deslocar para grandes centros urbanos. Isso, para ele, é cuidar da comunidade mesmo não estando dentro dela.
Uma mensagem para o futuro
Aos jovens indígenas que sonham em ocupar espaços historicamente negados, ele deixa um convite à persistência: “Tentam nos matar de diversas formas, mas seguimos vivos. O sonho é possível. E quando um entra, abre caminho para muitos”,
Neste 10 de dezembro, a trajetória de Otávio Kaxixó reafirma que representatividade não é apenas uma bandeira: é uma política de existência.
Autoria
Bruna Lupp
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