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Carreira29 novembro 2023

Quantos títulos mais eu preciso?

A importância de rever o acúmulo excessivo de horas de trabalho, funções e títulos para a prática profissional.

Por Rafael Duarte

Uma pergunta minha, um pouco pedante, ou uma autorreflexão “comum”? O fato é que no processo tradicional da vida ocidental, caminhamos por anos e anos, certamente desde a infância, em estudos, formações, dedicação e esforços para o desenvolvimento cognitivo-intelectual.

Veja também: Carreira Médica no exterior: Desafios e motivações

Provas, avaliações, trabalhos individuais e em grupo, aquisição de conhecimento, apresentações, seminários, bibliotecas, cadernos, livros, apostilas, iniciação científica, cursos extracurriculares, congressos, workshops, estágios intra ou extracurriculares, monitorias, finalização de projetos – até as possíveis conclusões de cursos –, de forma a construir uma carreira profissional adequada à prática laboral, conseguir um emprego com bom salário e obter um possível sucesso na área de formação.

E, se o diploma ainda não for suficiente, vamos em seguida mergulhar em formação especializada, pós-graduação – incluindo mestrado e doutorado –, uma, duas ou três residências médicas, pós-docs, pesquisa laboratorial ou clínica, outros cursos específicos, estágios, plantões, aulas, workshops, congressos, publicações, ensaios clínicos, palestras, orientações, seleções para vagas profissionais, provas para concursos, provas para a carreira acadêmica como professor ou investigador e, quiçá, ainda no meio disso tudo, fazer outro curso de graduação ou rumar para outras formações e empregos no exterior… Ufa!

Misturado a esse cenário todo, encontram-se ainda as relações sociais – dentro e fora dos contextos da formação educacional e de carreira –, as expectativas, decepções, a vida fora dos estudos – com suas diversas nuances e intercorrências, incluindo moradia, família, relacionamentos afetivos, problemas inesperados, saúde mental, alimentação, forma corporal, lazer e descanso, isto é, se forem possíveis. No entanto, respire, pois ainda há mais espaço.

A segunda pergunta, então, seria: “Até quando esse complexo do “combo” – seja de investimentos, atividades profissionais e/ou seus desafios –, precisa se perpetuar ou permitirmos que se perpetue?” A resposta, possivelmente, se distribui em três vertentes: (i) até quando nossa saúde permitir, (ii) na aposentadoria, ou (iii) até falecermos, em alguns casos mais persistentes.

A terceira e última pergunta, relacionada e consequente, então seria: “Qual o propósito de todo esse grande e longínquo esforço?” Podemos supor os principais motivos abaixo:

Opção ou vontade pessoal → Inerente ao indivíduo, muitas vezes inspirado em outros ascendentes que também exibiam conhecimento amplo e profundo, mediante uma reunião de formações; ou de forma a superar as limitações ou dificuldades profissionais familiares; ou para estar sempre preparado ou atualizado (updated) quanto às novidades na área;

Orgulho pessoal → Quando não se aplica usualmente as formações e títulos obtidos diretamente em sua prática profissional, mas constam em seus currículos de forma destacada;

Exigência ou necessidade intrínseca à carreira → Também poderíamos chamar de “formatação”, seja como um conceito positivo ou negativo. Isto é, para ter possibilidade de alcançar o cargo Z, você tem que ter, no mínimo, as formações a, b, c, d, e, f, g, h… (quase o alfabeto inteiro). Por outro lado, as múltiplas atualizações e novidades decorrentes do desenvolvimento científico também exigem do profissional uma reciclagem periódica de conhecimento para prover o melhor nas suas atividades laborais;

Estudante profissional → A “síndrome do eterno aprendiz”, que, se não estiver inscrito em um curso novo relacionado à profissão, se sentirá desatualizado e inferior aos outros, mesmo que consiga estudar ou se aprofundar paralelamente em estudos individuais, ou mesmo que já empregado e atuando como sempre planejou.

Na Medicina e na área da Saúde, em geral – em outras carreiras não médicas com estruturas semelhantes –, acabamos por mergulhar na mesma dinâmica de produção curricular, quase que eternamente em nossa vida. Para sermos melhor vistos e aceitos profissionalmente, necessitamos de títulos, e de preferência que sejam muitos. “Quanto mais (talvez) melhor”. Supõe-se, em nossa cultura, que quanto maior o número de títulos que temos, melhor o profissional que ali está na atenção e no cuidado com o paciente.

Tal afirmação certamente não corresponde à verdade em muitos exemplos. Determinadas vezes, e sem nos darmos conta, nos dedicamos tanto à produtividade na formação e carreira médica individual, incluindo o retorno financeiro tão almejado, que nos afastamos até mesmo das razões originais que nos fizeram iniciar o curso de medicina.

E, consequentemente, ao nosso afastamento do olhar no acolhimento do paciente, diante de intercorrências e falhas resultantes e possíveis, tendemos a empurrar a culpa exatamente ao nosso objeto de trabalho: o paciente, mesmo que a falha seja inerente à nossa falta de cuidado e atenção – e justa e novamente – por nosso afastamento do olhar no acolhimento do paciente.

Sob uma visão psicoanalítica, poderíamos reunir todas as opções acima em um resumo: Busca de reconhecimento, aceitação, validação e/ou pertencimento. Porém, o que trago aqui é a nova questão baseada na avaliação de uma estrada de títulos acumulados: “Já alcancei a qualidade de vida que eu quero?”.

títulos

Títulos na carreira médica

É comum iniciarmos os estudos de graduação em medicina e mergulharmos em um ritmo intenso de absorção de conhecimento mediante cobranças e o imenso volume de conteúdos no aprendizado médico.

São múltiplas horas e anos (em torno de 6 anos no mínimo) de aulas, estudos e atividades, às quais posteriormente somamos estágios, plantões, estudos para provas de residência, residência médica por novos longos anos, e praticamente não paramos nem diminuímos o ritmo, mesmo após a conclusão de muitos dos cursos ou especializações, ou até já na prática profissional. E se não bastasse todo o acúmulo de atividades, pode-se adicionar ainda cursos de pós-graduação, mestrado, doutorado e outros em todo esse processo.

Não são incomuns os transtornos de saúde mental, incluindo depressão e burnout dentre os estudantes e profissionais médicos já descritos em diversos manuscritos na literatura científica, em taxas em torno de 50% dos indivíduos dessa categoria, e com possível repercussão na queda da qualidade dos atendimentos médicos, desatenção, iatrogenias e erros médicos diversos (Rothenberger, 2017; Yates 2019).

Em uma significativa proporção desses casos (5 a 10%) há relatos de ideação suicida. Paralelamente, observou-se que apenas uma pequena fração desses “pacientes” consegue reorganizar a estrutura de intensas atividades cotidianas, nas quais se envolveram com resiliência, e em uma nova visão do bem-estar pessoal e autocuidado.

Dentre as estratégias de melhoria e profilaxia dos quadros de burnout sugere-se as práticas de atividade física regularmente, meditação com abordagem do tipo mindfulness, psicoterapia e outros. O baixo nível de espiritualidade esteve associado com maiores taxas de burnout, porém a religião não esteve significativamente relacionada com menores níveis desse transtorno (Whitehead et al., 2023).

É importante revermos a necessidade de acúmulo excessivo de horas de trabalho, funções e títulos para a prática profissional. Qual nível de satisfação pessoal profissional que precisamos? Qual objetivo? Há detrimento de outras áreas da vida nesse excesso de atividades? Quão mais produtivos precisamos ser? Ou quais objetivos reais nos movem de forma a não limitarmos nossa rotina à preservação da nossa qualidade de vida? Há prazer na prática profissional atualmente? Precisamos realmente de mais títulos para alcançarmos os objetivos na carreira? Buscamos reconhecimento ou conhecimento?

Títulos na vida acadêmica – Publicações, publicações, e mais publicações

De maneira semelhante, o corpo docente dos cursos médicos, os quais usualmente envolvem também professores de outras graduações ou propriamente médicos, também não difere muito quanto ao observado para os estudantes e profissionais médicos.

Geralmente, especialmente em universidades em que há pesquisa e ensino, os professores se envolvem em longas cargas horárias semanais de aulas e preparação delas, orientações de alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, preparação de provas e correção de provas, trabalhos burocráticos, atividades administrativas e de extensão, elaboração e execução de projetos de pesquisa, compras para o laboratório, prestação de contas, revisão de artigos científicos, resumos para congressos e apresentações, participação em bancas de avaliação, comitês, coordenação de disciplinas ou cursos, palestras, correção de monografias, dissertações e teses, submissão de artigos, reuniões e inúmeras outras funções.

Mesmo com todo esse agitado cenário, incluindo uma coleção de atividades atrasadas, ainda levam comumente trabalho para o domicílio e finais de semana, de forma a tentar driblar os prazos e deadlines que impõem as prioridades até mesmo sobre a vida pessoal. E se não bastasse tudo isso, ainda provavelmente procuram (ou surgem) novos editais de projetos, colaborações nacionais ou internacionais, novas formações e capacitações e a obrigatoriedade anual de publicações, publicações, e mais publicações em um número mínimo competitivo e máximo ilimitado que permita captar novos recursos financeiros para os novos projetos e ter destaque no meio científico e em instituições de fomento (Halat et al., 2023). Ufa!

Nessa comunhão de funcionalidades de um professor universitário, não são poucos os problemas ocorridos. A maioria desses problemas relacionados com atritos entre os docentes e entre os alunos e docentes, exaustão emocional e burnout (com taxas em torno de 24%, e com predominância no gênero feminino), depressão, ansiedade, a instabilidade no cargo desempenhado, pressão excessiva por publicações, claramente resultando em fraudes em análises e resultados científicos, artigos de qualidade questionável, plágios em textos oficiais, duplicação de manuscritos publicados, confusões ou inadequação nas autorias de artigos (Carrell & Simoni, 2018; Hughes, 2007; Johnson, 2014; Kennedy, Barnsteiner & Daly, 2014; Redondo-Flórez et al., 2020; Tijdink, Vergouwen & Smulders, 2013, 2014; Zauner et al., 2018).

Novamente então, trago o mesmo conjunto de questões: É importante revermos a necessidade de acúmulo excessivo de horas de trabalho, funções e títulos para a prática profissional. Qual nível de satisfação pessoal-profissional que precisamos? Qual objetivo? Há detrimento de outras áreas da vida nesse excesso de atividades? Quão mais produtivos precisamos ser? Ou quais objetivos reais nos movem de forma a não limitarmos nossa rotina à preservação da nossa qualidade de vida? Há prazer na prática profissional atualmente? Precisamos realmente de mais títulos para alcançarmos os objetivos na carreira? Buscamos reconhecimento ou conhecimento?

Leia mais: Maternidade e Carreira Médica

Conclusões

A revisão das metas e objetivos a serem alcançados em cada carreira deve ser prioridade na construção da caminhada profissional. O sucesso e os títulos não devem ser alvos absolutos ilimitados em detrimento da satisfação e cuidados em nível pessoal, familiar ou social. Deve haver um “fim” (um limite) como objetivo final para a conquista da satisfação pessoal, de forma que qualquer adição de atividade envolva um prazer na sua execução, sem a pressão e as ansiedades para o cumprimento ou conclusão das tarefas para a obtenção de novos títulos (Lal et al., 2020).

A submissão ao formato agressivo e exigente do sistema de formação e produção podem desestruturar a saúde mental, o autocuidado, a estrutura familiar e comunitária, resultando em disfuncionalidades evidentes na qualidade de vida em vida (Halat et al. 2023).

O acúmulo de títulos não se traduz diretamente em bons profissionais, especialmente se esses, na ânsia do reconhecimento, se distanciam da socialização e da interatividade que são basais ao melhor funcionamento de uma sociedade.  Algumas das tomadas de medidas que reduzem o estresse diário ou rotineiro devem incluir:

  • Horas (ou dias) rigorosas de descanso;
  • Melhorias na qualidade de vida:
    • Dieta saudável;
    • > 8 horas de sono;
    • Exercício físico regular;
    • Leituras diversas;
    • Hidratação;
    • Retirada de vícios (tabagismo, etilismo, uso de drogas);
    • Peso apropriado para a idade e estrutura corporal
  • Descentralização de atividades mediante compartilhamento de tarefas entre membros da equipe;
  • Limitação de atividades e tarefas diárias;
  • Cumprimento de horas máximas de trabalho diário;
  • Evitar carga laboral em finais de semana;
  • Evitar leitura de e-mails ou mensagens relacionadas ao trabalho nas horas fora do trabalho;
  • Atividades ao ar livre e na natureza;
  • Exercícios de meditação e/ou espiritualidade.

Com a prática e execução de muitos desses aspectos supracitados, é possível vislumbrar o sentimento de realização e satisfação pessoal e da equipe envolvida, e uma melhor harmonia dos projetos traçados, dessa vez tornando o “começo, meio e fim” como algo palpável, plausível e natural, isto é, alcançável.

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Referências bibliográficas

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