Dentre os indivíduos que buscam a unidade hospitalar de saúde após uso de drogas ilícitas, a maioria fez uso de cocaína, principalmente pela sua fácil administração, custo relativamente baixo, ampla disponibilidade e a falsa crença de que o uso recreativo não é danoso à saúde.
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A droga
A cocaína é um alcaloide extraído do arbusto da Erythroxylon coca, presente principalmente na América do Sul. Ela está disponível em duas formas, o sal cloridrato e a base livre. O sal vem em forma de pó e pode ser administrado pela via nasal, oral ou injetável, e é muito bem absorvido pelas mucosas do corpo. Já a base vem em forma de pedra e é termoestável, podendo ser fumada. Além disso é mais barata, de duração de ação mais curta e mais intensa, com maior poder viciante. É conhecida como crack devido ao barulho que faz ao ser queimada.
A cocaína tem uma meia-vida plasmática curta, de apenas 45 a 90 minutos, porém seus metabólitos podem permanecer no corpo por até 24 a 36 horas. A droga bloqueia a recaptação pré-sináptica de noreprinefrina e de dopamina, produzindo assim, um excesso desses transmissores no local do receptor pós-sináptico e causando efeito simpaticomimético.
Isquemia e infarto do miocárdio
A utilização da substância pode levar ao aumento da demanda miocárdica de oxigênio, vasoconstrição arterial coronariana e aumento da agregação plaquetária e da formação de trombos. Essas alterações podem resultar em isquemia ou infarto do miocárdio.
Em virtude de seus efeitos simpaticomiméticos, a cocaína aumenta a frequência cardíaca, a tensão da parede e a força de contração do ventrículo esquerdo, aumentando assim a demanda de oxigênio para o coração. Ao mesmo tempo causa vasoconstrição das artérias epicárdicas com redução da oferta de oxigênio, sendo este efeito mais pronunciado em artérias já doentes, o que faz com que pacientes com doença aterosclerótica estabelecida tenham risco mais elevado de infarto com o uso da droga.
Outros efeitos da cocaína são alterações estruturais no endotélio, aumentando a permeabilidade ao LDL e a expressão de moléculas de adesão endotelial, favorecendo a migração leucocitária, todos esses associados àuub aterogênese. Além disso, a droga aumenta a ativação e agregação plaquetária, assim como eleva a concentração do inibidor de ativação do plasminogênio, o que pode promover a formação de trombos.
O risco de infarto aumenta 24 vezes durante os 60 minutos posteriores ao uso de cocaína em indivíduos considerados de baixo risco. A ocorrência de infarto não parece estar relacionada a dose ingerida, tampouco com a frequência de uso da droga.
Álcool mais cocaína
O consumo concomitante de álcool e cocaína produz um metabólito chamado cocaetileno. Esse age de forma semelhante à cocaína e nos experimentos com animais provou ser mais potente e letal que somente a cocaína. O uso da cocaína e do álcool em conjunto é mais mortal que qualquer uma das substâncias em separado.
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Disfunção miocárdica pela cocaína
O uso crônico de cocaína está associado a hipertrofia ventricular esquerda, bem como disfunção sistólica ou diastólica do ventrículo esquerdo.
Os mecanismos para a ocorrência desses eventos são a isquemia/infarto induzida pela cocaína, a estimulação simpática do coração frequente e repetitiva (semelhante a do feocromocitoma, que pode produzir cardiomiopatia e alterações microscópicas características de necrose em bandas por contração em bandas miocárdicas), a administração de agentes adulterantes e infectantes (pode causar miocardite, principalmente quando uso injetável), a produção de espécies reativas de oxigênio, com alteração na produção de citocinas e indução da transcrição de genes responsáveis pelas alterações da composição do colágeno miocárdico e da miosina, induzindo a apoptose dos miócitos.
Outras complicações cardiovasculares
Arritmias, em decorrência da capacidade de bloquear canais de sódio e estimular o sistema nervoso simpático e do aumento da massa do ventrículo esquerdo e da espessura da parede, que são fatores arritmogênicos conhecidos.
Endocardite, em decorrência dos efeitos hemodinâmicos de aumento de pressão e frequência cardíaca, que podem predispor a maior lesão valvar, de um efeito imunossupressor da cocaína que pode favorecer a infecção, além do modo como a cocaína é preparada e os adulterantes presentes nela. As endocardites de usuários de cocaína injetável tendem a acometer o lado esquerdo do coração.
Avaliação do paciente com dor torácica que usou cocaína
A utilização dos escores de risco TIMI e HEART nesta população parece ser limitada, com tendência de subestimar o risco. Na avaliação eletrocardiográfica, até 84% dos pacientes tem alterações, desde variações da normalidade, como repolarização precoce, até alterações realmente isquêmicas. Um estudo mostrou que até 35% dos pacientes tiveram ECG relatado como normal ou com alterações inespecíficas.
O marcador cardíaco recomendado é a troponina, de preferência ultrassensível, já que esses pacientes costumam ter também rabdomiólise e história de trauma, o que faz com que CPK e CK-MB se tornem ainda mais inespecíficas.
Tratamento
O tratamento de pacientes usuários de cocaína com dor torácica ou infarto tem algumas particularidades descritas abaixo. Os antiagregantes plaquetários, como aspirina e inibidor do P2Y12 (clopidogrel, prasugrel ou ticagrelor) seguem as recomendações habituais, assim como a heparina.
– Benzodiazepínicos, como lorazepam, são considerados medicação de primeira linha nessa população, pois atuam reduzindo a atividade simpática e levando a efeitos benéficos na redução da frequência cardíaca e da pressão arterial, vasodilatação coronária e redução da ansiedade.
– Nitroglicerina também tem grandes benefícios, pois alivia a dor e reverte a vasoconstrição coronária causada pela cocaína, além de reverter episódios de vasoespasmo.
– O uso de betabloqueadores é controverso pois há uma ideia geral que seu uso faz com que o estímulo dos receptores alfa fique sem nenhuma contraposição pelo bloqueio beta (receptores B2 levam a vasodilatação), o que pode gerar aumento da PA e vasoconstrição coronária, sendo totalmente contraindicado por alguns autores.
O labetalol, que tem efeitos tanto em receptores beta quanto alfa, tem sido proposto como uma alternativa nesses pacientes. Porém, atualmente a recomendação das diretrizes é evitar betabloqueadores em pacientes que fizeram uso de cocaína e apresentam sinais de intoxicação aguda pela droga. Bloqueadores de canal de cálcio também devem ser evitados.
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Conclusão
A cocaína atua de maneira danosa no coração humano e vários testes animais provaram que tem efeitos maléficos no sistema cardiovascular. Além das consequências acima, a cocaína ainda pode induzir dissecção aguda de aorta e acidente vascular encefálico. Atenção especial deve ser dada a pacientes jovens, sem fatores de risco que sofrem infarto, pois há algumas particularidades em relação ao seu tratamento inicial.
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