Tempo de leitura: [rt_reading_time] minutos.
Este mês a European Society of Cardiology (ESC) publicou uma nova diretriz sobre doença arterial periférica (DAP). Como a maior parte dos seus documentos, é um texto bastante completo e didático, com gráficos e tabelas que ajudam muito a fixar o tema.
O primeiro aspecto do documento é definição: DAP não é somente a aterosclerose em membros inferiores, mas sim em qualquer sítio arterial. Como é uma área do conhecimento compartilhada com o cirurgião vascular, o foco da diretriz é o tratamento clínico desses pacientes, não se prendendo a detalhes da técnica cirúrgica. Além disso, como é uma sociedade de cardiologia, abordou-se apenas a DAP causada por aterosclerose, excluindo outras etiologias, como vasculites e dissecção.
Em nosso texto separamos os pontos principais para você, divididos didaticamente em “princípios gerais” e nas doenças periféricas mais comuns: carótida e membros inferiores.
Princípios gerais do tratamento
A maior preocupação da ESC foi enfatizar que a aterosclerose é doença sistêmica e, como tal, todo paciente com DAP deve receber tratamento anti-aterosclerose. Em relação ao processo diagnóstico, na maioria das DAPs o exame inicial é o ultrassom com doppler; a angioTC ou a angioRM são reservadas para detalhamento anatômico quando há previsão de intervenção cirúrgica ou endovascular. A arteriografia é pouco utilizada apenas para diagnóstico, sendo reservada para os casos de tratamento endovascular.
Estatinas | Dose máxima: pacientes com DAP são equivalentes de alto risco na doença cardiovascular |
Alvo (baseado na diretriz ESC): LDL < 70 mg/dl e pelo menos 50% de redução se LDL basal estava entre 70-135 mg/dl | |
Anti-hipertensivos | iECA e BRA são drogas de escolha na HAS |
Não há contra-indicação aos betabloqueadores!!! Mesmo em pacientes com LEAD* | |
Meta PA ≤ 140×90 mmHg (em diabéticos, considerar PA diastólica ≤ 85 mmHg) | |
Antiplaquetários | Monoterapia em todos os pacientes. Exceção: LEAD assintomática, no qual não há indicação formal de antiplaquetários**. |
Dupla antiagregação por 30 dias após stent endovascular | |
Em pacientes com indicação para anticoagulação sistêmica (ex: FA) e portadores de LEAD*, pode-se não associar antiagregante plaquetário, salvo se portador de stent | |
Um estudo sugere que na DAP o clopidogrel seria mais eficaz que AAS em monoterapia. | |
Controle glicêmico estrito | |
Interrupção tabagismo |
*LEAD: lower-extremity arterial disease – doença arterial isquêmica de membros inferiores. Você achou estranho este termo? Nós também! Mas é uma iniciativa da ESC para que as pessoas lembrem que DAP vai além de doença arterial dos MMII.
**Mas lembre que são pacientes de alto risco e você pode, frente a um escore de risco global elevado, considerar o AAS como prevenção primária de doença cardiovascular geral.
Doença Carotídea
É definida pela presença de obstrução ≥ 50% na carótida extracraniana. É considerada assintomática se não há sintomas nos últimos 6 meses. É este subgrupo no qual há maior divergência se o benefício de intervenção supera os riscos. Apesar de não haver consenso, a maior parte dos autores recomenda intervenção quando há preditores de alto risco de AVC:
- Infartos cerebrais silenciosos na RM ou TC do SNC
- AVC ou AIT no território cerebral contralateral
- A estenose piora progressivamente com o passar do tempo (> 20%)
- Doppler transcraniano visualiza microembolização espontânea
- Placas largas e/ou brilhantes no US (“ecolucentes”) (alto risco embolização)
- Área hipoecogênica justaluminal no US (placa instável)
- RM com hemorragia na placa de aterosclerose e/ou centro rico em lipídeos (placa instável)
No paciente sintomático, o momento da intervenção também é tema de estudos recentes e a conclusão é que há maior benefício nos primeiros 14 dias após AVC/AIT. Em pacientes com grandes áreas de AVC, deve-se evitar as primeiras 48h, pois há maior risco de transformação hemorrágica.
*Caso boa expectativa de vida e centro médico com baixo índice de complicações / boa experiência com procedimento.
**Há muito debate nessa área, mas em geral a cirurgia tem resultados levemente superiores no longo prazo, sendo o stent melhor opção no paciente com alto risco cirúrgico, nos > 70 anos e se anatomia favorável. Considerar o uso de “protetores” (“rede ou guarda-chuva”) contra a embolização durante o procedimento. Além disso, as melhores evidências são para obstruções de 70-99%, em comparação com aquelas entre 50-69%.
Doença Arterial Isquêmica de Membros Inferiores (LEAD)
O índice tornozelo-braquial (ITB) é a principal ferramenta diagnóstica. O método ideal utiliza um doppler arterial portátil, mas é possível associar o método palpatório da PA. Está recomendado:
- Claudicação intermitente
- Sinais de isquemia arterial em MMII
- Doença aterosclerótica em outros sítios
- Pessoas > 65 anos
- Pessoas < 65 anos, mas escore de risco global cardiovascular alto
- Pessoas > 50 anos e história familiar de LEAD
Além disso, considere um ultrassom para screening de aneurisma de aorta abdominal em todo paciente com LEAD.
O tratamento clínico nós já comentamos anteriormente neste texto. Mas e o tratamento sintomático? A diretriz não enfatiza. Diz que a maioria dos estudos tem resultados questionáveis, muita variabilidade e não modifica desfechos “duros”, como morte, IAM ou AVC. Nem o cilostazol escapa dessa análise…
Nesse momento do plano terapêutico, é preciso categorizar a LEAD em três subgrupos.
Aguda | Todos os pacientes:
HEPARINA (dose plena) | Membro viável, sem déficit neurológico: cirurgia e/ou endovascular urgente. |
Membro viável, déficit neurológico: cirurgia de emergência, em geral endovascular. Avaliar trombólise in situ*. | ||
Lesões irreversíveis (ex: necrose dedos): amputação. | ||
Crônica Sintomática | AAS
Estatina | 1ª opção: exercícios! |
2º opção: revascularização, que pode ser cirurgia ou endovascular.
Cirurgia: lesões longas, distais, complexas. Endovascular: lesões curtas, proximais, leito distal bom. | ||
“Chronic Limb-Threatening Ischemia” | Classificar gravidade pelo esquema WIfI (“WiFi”):
Wound (ferida): profundidade e presença de necrose Isquemia, avaliada pelo ITB fI: foot infecção, gravidade da infecção | |
Tentar sempre revascularização para reduzir área amputada | ||
Controle rígido da glicemia | ||
Tratamento de infecções intercorrentes |
*Não há indicação de trombólise sistêmica na LEAD.
Neste momento, cabe um comentário sobre “Chronic Limb-Threatening Ischemia”: antigamente chamada de “isquemia crítica de MMII”, teve a denominação modificada justamente para chamar a atenção para o componente multifatorial da lesão. A maior parte dos pacientes são diabéticos e há três mecanismos concorrentes:
- Isquemia
- Neuropatia
- Ferida infectada
O cenário usual é um diabético com necrose e/ou úlcera > 2 semanas, com ITB < 0,40. A dor de claudicação nem sempre está presente devido à neuropatia concomitante, o que retarda a procura de auxílio médico e contribui para a doença só ser percebida quando há necrose irreversível. A história clássica é o paciente diabético de longa data, sem queixas, que observa uma ferida nos pododáctilos que não cicatriza. Isso tanto é verdade que nos textos sobre diabetes já aparece como “síndrome do pé diabético”. Por isso, o cuidado médico é multiprofissional e requer:
- Antibióticos com cobertura polimicrobiana. Na comunidade, amoxicilina/clavulanato ou ciprofloxacino/clindamicina.
- Debridamento de feridas de tecido infectado, com curativo diário.
- Revascularização para melhorar condições do coto.
- Amputação de áreas necróticas. Na “necrose seca”, é possível agendar a cirurgia com calma, mas quando há infecção não-controlada, é uma urgência médica.
E o que mais há de novidade?
Doença arterial MMSS | Tratamento com cirurgia ou endovascular nos casos de:
Sintomas refratários graves Necessidade de uso da mamária para cirurgia miocárdica Doença bilateral, a fim de facilitar medida da PA |
Doença renovascular | Não há indicação de intervenção para controle da HAS.
O raro caso de intervenção será paciente com perda da função renal, edema pulmonar recorrente, cujo rim ainda seja viável e haja estenose de rim único ou bilateral. |
Doença arterial mesentérica | É mais comum na mesentérica superior.
Pode ser aguda ou crônica. Na forma aguda, o d-dímero tem sido utilizado de modo similar à TVP: se negativo, afasta doença; se positivo, prossiga a investigação. O tratamento endovascular é mais utilizado que o cirúrgico. Na diretriz, diz que não se deve retardar a revascularização em pacientes sintomáticos só para melhorar suporte nutricional, mesmo em casos crônicos. |
Referências:
- European Heart Journal, ehx095, https://doi.org/10.1093/eurheartj/ehx095. Published: 26 August 2017
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.