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A população mundial vem crescendo e envelhecendo. Com isso, é natural que o número de cirurgias aumente com o passar dos anos. As doenças cardiovasculares são a principal causa de morbimortalidade no mundo e não é esperado que seja diferente no per e pós-operatório: 30% dos pacientes cirúrgicos apresentam cardiopatia e, por outro lado, as doenças cardiovasculares são a principal causa de complicação fatal no pós-operatório.
Por isso, você precisa de dois objetivos: rastrear e estimar o risco de cardiopatia do seu paciente e, no paciente já sabidamente cardiopata, prepará-lo com sucesso para cirurgia. Esse texto se dedica ao primeiro cenário.
Como estratificar o risco cardiovascular
Há três fatores que influenciam o risco cirúrgico:
- A cirurgia
- O paciente
- Sua capacidade funcional
Por isso, a etapa 1 é esmiuçar essas informações.
A CIRURGIA
Fique de olho em dois itens: grau de urgência da cirurgia e o seu porte/tamanho.
Urgência | Emergência | Há risco de vida. Vai direto para centro cirúrgico e o trabalho é tratar as descompensações |
Urgência | Você terá poucos dias para ajuste de medicações e preparo | |
Eletiva | O paciente deve entrar em sala nas melhores condições possíveis | |
Porte | Pequeno (<1%)* | Superficial
Mama Dentária Tireoide Olho Reconstrutiva Carótida em paciente assintomático RTU prótata |
Médio (1-5%) | Carótida em paciente sintomático
Cirurgia abdominal ou torácica Endovascular: aorta e doença arterial periférica Cabeça e pescoço Neurocirurgia Ortopedia Renal | |
Alto (> 5%) | Vasculares (abertas)
Duodenopancreatectomia Hepatectomia Esofagectomia Perfuração intestinal Adrenalectomia Cistectomia radical Pneumectomia Transplante hepático ou pulmonar |
*Percentual de risco de complicações cardiovasculares
Adaptado de: Glance LG, Lustik SJ, Hannan EL, Osler TM, Mukamel DB, Qian F et al. The surgical Mortality Probability Model: derivation and validation of a simple risk prediction rule for noncardiac surgery. Ann Surg 2012;255:696–702.
A cirurgia de urgência ocorre comumente em dois cenários: uma patologia aguda, como colecistite ou diverticulite, na qual inicia-se hidratação, antibióticos e a cirurgia é realizada em 48h, e nas patologias “crônicas”, para as quais o adiamento da cirurgia apresenta um risco para o paciente. O exemplo mais típico é o câncer: não serão 2 ou 3 semanas que irão mudar o prognóstico, mas 2 ou 3 meses já podem começar a fazer a diferença.
O PACIENTE
A história e o exame físico continuam sendo os pilares da avaliação clínica. Quando não houver todas as informações (por exemplo, o paciente não informa bem) ou quando o exame físico levantar suspeita de comorbidade desconhecida pelo paciente (por exemplo, B3 e sopro em paciente sem cardiopatia), exames complementares podem auxiliar na estratificação de risco. Mas isso não quer dizer que haja um kit para qualquer cirurgia, como vemos em muitas instituições. É preciso racionalizar a escolha de exames, por questões de custo e pelos riscos dos achados incidentais (veja a história do PSA e da mamografia).
Tabela 1. Avaliação clínica do paciente no pré-operatório
Tabela 2. Principais exames complementares no pré-operatório
Sabe aquele paciente que você bate o olho e “tem maus presságios” para a cirurgia? Doença crônica, câncer, emagrecimento, má distribuição hídrica, etc são fatores de fácil identificação que mostram um paciente de maior risco, não especificamente para eventos cardiovasculares, mas sim para complicações gerais, como deiscência da ferida e infecções. O índice de Charlson é um escore muito utilizado para estimar a gravidade das comorbidades em pacientes de forma geral, tendo sido comprovado como preditor de risco em cirurgias não cardíacas.
Tabela 3. Índice de Charlson
PESO |
CONDIÇÃO CLÍNICA |
1 | Infarto do miocárdio
Insuficiência cardíaca congestiva Doença vascular periférica Demência Doença cerebro-vascular Doença pulmonar crônica Doença tecido conjuntivo Diabetes leve, sem complicações Úlcera |
2 | Hemiplegia
Doença renal severa ou moderada Diabetes com complicação Tumor Leucemia Linfoma |
3 | Doença do fígado severa ou moderada |
6 | Tumor maligno, metástase
SIDA |
A CAPACIDADE FUNCIONAL
O terceiro e último item da avaliação do risco cirúrgico é a capacidade funcional do paciente. Muitos vão achar esse parâmetro muito óbvio. Outros, subjetivo. Mas não se iluda: nos estudos de predição de risco, é um dos parâmetros com maior associação com risco de complicações e óbito. Tanto que a diretriz da American Heart Association indica teste funcional para pacientes de baixa capacidade funcional com proposta de cirurgia de médio a alto risco. Como a evidência científica por trás dessa recomendação não é robusta, preferimos a estratégias da European Society of Cardiology e do excelente artigo do Grant e cols. A capacidade funcional é estimada pelo gasto metabólico basal (MET). Estima-se o MET para as atividades que o paciente é capaz de realizar. Há boa capacidade funcional quando essas atividades equivalem a ≥ 4 METs.
Tabela 4. Estimativa da capacidade funcional pelo MET
MET |
Atividade física relacionada |
1 MET |
|
1 a 4 METs |
|
4 a 6 METs |
|
>10 METs |
|
Agora que você já conhece bem o seu paciente, a próxima etapa é decidir o que fazer: o paciente pode operar? Precisa de mais exames? Quais?
O algoritmo 1 mostra a conduta inicial: pacientes com cirurgia de emergência devem operar imediatamente e não há tempo para estratificação. O clínico atuará na prevenção e compensação de complicações. O paciente sintomático, em cirurgias eletivas, deve investigar o seu sintoma (por exemplo, dor precordial), pois recomenda-se que ele esteja nas melhores condições possíveis para operar. Por outro lado, o paciente assintomático e em pré-operatório de uma cirurgia de pequeno porte (baixo risco), pode operar sem necessidade de estratificação cardiovascular. A grande dúvida é o paciente assintomático candidato a uma cirurgia de médio ou alto risco.
Nesse caso, utilize um escore para estimar o risco de eventos cardiovasculares. Os de Goldman e o de Lee são os mais utilizados. No algoritmo 2, estão as sugestões de conduta baseados nessa estratificação.
O paciente com 0 ou 1 pontos são considerados de baixo risco. Não é necessário teste funcional e não está indicado betabloqueador. Se houver ≥ 3 pontos, o risco é alto. Há indicação de teste funcional e uso profilático de betabloqueadores. A grande dúvida é o paciente com 2 pontos (intermediário). Aqui, será preciso individualizar a estratégia, pois há duas opções: solicitar um teste funcional e iniciar ou não o betabloqueador profilático. Não há, ainda, evidência científica da melhor estratégias.
Nossa sugestão é: caso um desses 2 pontos seja cirurgia de alto risco, ICC ou coronariopatia, considere o teste e o betabloqueador. Para diabéticos e pacientes com doença renal crônica, na ausência de história, sintomas ou sinais de IC/DAC, seja conservador e realize a cirurgia sob monitorização e tratamento clínico. A escolha do teste funcional e a interpretação dos seus resultados é semelhante a um paciente com angina estável:
Baixo risco = tratamento clínico e apto à cirurgia
Alto risco = tratamento clínico e coronariografia
Atenção: em cirurgias vasculares, o escore de Lee é adaptado, mas a interpretação é similar:
Tabela 5. Escore de Lee adaptado para cirurgia vascular
- Até 4 pontos: baixo risco, apto ao procedimento vascular.
- 5 a 7 pontos: risco intermediário, deve-se solicitar um teste funcional para isquemia miocárdica.
- ≥8 pontos: alto risco, avaliar adiar a cirurgia e/ou solicitar coronariografia.
Clique aqui para ver mais artigos do nosso especial sobre risco cirúrgico!
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