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Cardiologia6 março 2024

DOACs na trombose venosa esplâncnica

Os DOACs parecem seguros e eficazes na síndrome de Budd-Chiari, sendo opções terapêuticas permitidas pelas diretrizes internacionais.
Por Leandro Lima
Os anticoagulantes orais de ação direta (DOACs) têm ganhado cada vez mais espaço na prática clínica, estando consolidados na profilaxia de eventos cardioembólicos na fibrilação atrial não valvar e no tratamento de eventos tromboembólicos venosos em sítios usuais e não relacionados à síndrome antifosfolípides. Entretanto, à luz das atuais evidências, podem ser considerados seguros e eficazes no tratamento da trombose venosa esplâncnica (TVE)? A TVE é uma condição potencialmente grave e caracterizada pela formação de coágulos no sistema venoso abdominal, contemplando desde a área de drenagem do esôfago distal até os dois terços proximais do reto.  Veja também: Lipoproteína A alta e AAS: há espaço para prevenção primária? De acordo com o sítio anatômico envolvido, a TVE pode ser subdivida em:  
  • Trombose venosa portal, quando acomete a veia porta, a veia mesentérica superior e/ou a veia esplênica;  
  • Síndrome de Budd-Chiari, quando compromete a drenagem venosa hepática por acometimento das veias hepáticas, veia cava inferior ou do próprio átrio direito.
A prevalência populacional da TVE não ultrapassa os 0,2%, mas o desenvolvimento de trombose venosa portal (TV portal) é esperado em 1 a cada 4 portadores de doença hepática crônica avançada (DHCA) em um intervalo de 5 anos.    O tratamento padrão da TVE consiste em anticoagulação tradicional, pautada inicialmente em heparina de baixo peso molecular e transicionada para o regime de manutenção com antagonistas da vitamina K (VKAs), somado às moderadas abordagens intervencionistas endovasculares, que incluem o TIPS, angioplastia, trombectomia por sucção ou trombólise guiada por cateter.    Os estudos relativos ao emprego dos DOACs no tratamento da TVE são escassos, embora os dados recentes sejam encorajadores, com o apelo pautado nas menores interações medicamentosas e dietéticas, maior previsibilidade terapêutica e dispensação da monitorização do RNI.  

Trombose de veia porta não-cirrótica  

A TV portal, na ausência de doença hepática crônica avançada, geralmente tem como substrato etiológico a trombofilia, seja adquirida ou hereditária, ou a presença de fatores locais desencadeadores.  

Grupos etiológicos da trombose venosa portal não cirrótica 

Trombofilias adquiridas (50%) 
  • Doenças mieloproliferativas (mutação V617F do gene JAK2); 
  • Fatores hormonais (anticoncepcionais orais e gestação); 
  • Síndrome antifosfolípides (SAF); 
  • Miscelânea (doenças autoimunes, sarcoidose, citomegalovírus, Covid-19 e sepse).  
Trombofilias hereditárias (20%) 
  • Mutação do fator V de Leiden (8%); 
  • Mutação do gene G20210A da protrombina (5%); 
  • Deficiência de antitrombina (5%); 
  • Deficiência de proteína S e C (<2% e <1%, respectivamente).  
Fatores locais (20%) 
  • Cirurgia abdominal 
  • Doenças inflamatórias ou infecciosas abdominais (pancreatite, diverticulite, doenças inflamatórias intestinais, vasculite abdominal e malignidades).  

Causa não identificada (15-40%) 

Em termos cronológicos, a TV portal pode ser subdividida em aguda, quando presumidamente presente há menos de seis meses; ou crônica, quando ultrapassar o referido limiar ou for identificada a sua transformação cavernomatosa.    Os objetivos do tratamento da TV portal aguda incluem a recanalização e prevenção da extensão do coágulo, minimizando o risco de isquemia mesentérica e hipertensão portal. O sucesso terapêutico está intimamente relacionado à instituição precoce do tratamento, que deverá ser mantido por pelo menos três a seis meses. Entretanto, a anticoagulação deve ser considerada por prazo indeterminado, principalmente quando são identificados os fatores pró-trombóticos.    Por sua vez, na TV portal crônica, embora o benefício da anticoagulação seja menos claro, geralmente mantém-se a recomendação terapêutica. Nesses casos, contudo, a conduta deve ser precedida pela instituição de profilaxia de sangramento relacionado à hipertensão portal.    Os estudos que avaliaram o emprego de DOAC na TV portal entre não cirróticos são predominantemente de natureza retrospectiva, com número limitado de pacientes e tempo de seguimento curto, com grande heterogeneidade quanto ao DOAC utilizado, bem como as doses empregadas e o tempo de tratamento instituído. Apesar das limitações metodológicas, a tendência dos DOACs é de não inferioridade em relação à enoxaparina e superioridade em termos de taxa de recanalização e segurança relacionada a sangramentos quando comparados aos VKAs.    Leia ainda: Diagnóstico e tratamento de doenças da aorta ascendente: o que devemos saber

Trombose de veia porta cirrótica  

A história natural da TV portal entre os cirróticos pode ser de recanalização e melhora espontânea em cerca de um terço dos casos ou progressão do trombo em um quarto deles.    O consenso de Baveno VII traz as seguintes recomendações de anticoagulação na TV portal: 
  • TV portal aguda (< 6 meses); 
  • TV portal oclusiva (envolvimento > 50% da luz do tronco principal da veia portal); 
  • TV portal sintomática; 
  • TV portal entre os candidatos ao transplante hepático, com o intuito de facilitar as anastomoses vasculares. 
Na TV portal suboclusiva (< 50%), a anticoagulação também deve ser considerada quando, no seguimento radiológico, identifica-se a extensão do coágulo para a veia mesentérica superior.    O tratamento deve ser mantido até a recanalização da veia porta e por um período mínimo de seis meses. A anticoagulação por tempo indefinido deve ser considerada entre os pacientes ativos em fila de transplante hepático. A segurança do tratamento tem sido demonstrada, como na meta-análise de Loffredo, publicada em 2017, que não encontrou diferenças significativas entre sangramentos maiores ou menores entre os pacientes anticoagulados ou não. Além da segurança, a meta-análise IMPORTAL, conduzida por Guerrero e colaboradores em 2023, demonstrou a redução de mortalidade por todas as causas entre os indivíduos anticoagulados, e de forma independente da recanalização da veia porta.    Apesar dos estudos pivotais dos DOACs na fibrilação atrial e tromboembolismo venoso terem excluído os indivíduos cirróticos, várias coortes têm analisado esse importante subgrupo, apontando para os seguintes dados:   

Uso dos DOACs na DHCA 

Child A 

Considerado seguro 

Child B 

Deve ser individualizado e cauteloso  

Child C 

Contraindicado.

A maioria dos estudos que envolvem os DOACs na TV portal cirrótica são retrospectivos, com número limitado de pacientes e heterogêneos no que se refere à classificação da entidade, aos fármacos e doses utilizados e à duração do tratamento. De todo modo, os DOACs podem representar uma alternativa viável à anticoagulação convencional, embora estudos randomizados controlados se façam necessários.     

Síndrome de Budd-Chiari  

Na síndrome de Budd-Chiari destacamos o papel etiológico das doenças mieloproliferativas, presentes entre 30 e 57% dos casos; bem como da hemoglobinúria paroxística noturna e a síndrome de Behçet, que em conjunto podem responder por 12% dos casos, ficando clara a necessidade de tratar especificamente as condições de base por vezes identificadas.    A combinação de fatores de risco pode ser encontrada em quase metade dos casos de Budd-Chiari, enquanto a ausência de gatilhos claros é observada em até 29% dos deles. De toda forma, a anticoagulação por longo prazo é recomendada.    O papel do emprego de DOACs nesse cenário é bem menos estudado do que na TV portal. Em um estudo australiano multicêntrico, envolvendo 41 pacientes, o uso de DOACS (22 pacientes) foi comparado com a anticoagulação tradicional (19 pacientes), tendo-se observado maior taxa de recanalização completa (64%) e sobrevida livre de transplante em 5 anos (92%) entre os usuários de DOACs.   Os DOACs parecem seguros e eficazes na síndrome de Budd-Chiari, sendo opções terapêuticas permitidas pelas diretrizes internacionais, embora estudos prospectivos se façam necessários para que a adoção em larga escala possa ser respaldada.    Saiba mais: Tratamento antiarrítmico na insuficiência cardíaca

Conclusão e mensagens práticas  

  • A trombose venosa esplâncnica (TVE) inclui a formação de coágulos nas veias hepáticas, cava inferior, porta, mesentérica superior e esplênica.  
  • Entre os pacientes não cirróticos, as trombofilias (adquiridas ou hereditárias) e fatores locais frequentemente estão implicados, com destaque para as doenças mieloproliferativas.  
  • Entre os cirróticos, é esperada a trombose da veia porta, que se desenvolve em 25% dos casos ao longo de 5 anos.   
  • O pilar do tratamento da TVE é a anticoagulação tradicional: heparina de baixo peso molecular na fase aguda, seguida por manutenção com antagonistas da vitamina K.  
  • O emprego dos anticoagulantes de ação direta (DOACs) nesse cenário, embora promissor, carece de estudos prospectivos randomizados, sendo que a evidência atual é pautada principalmente em estudos retrospectivos, pequenos e com grande heterogeneidade.  
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Referências bibliográficas

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