Dia a dia do médico intensivista
Em março de 2020, a pandemia de Covid-19 estava no seu início e a sociedade se retraía em confinamento nos domicílios para tentar reduzir e atrasar o contágio disseminado da nova doença respiratória.
Não se conhecia bem a patogênese, nem o tratamento. Sabia-se apenas que 1 em cada 4 pacientes internados precisavam de vaga em Unidades de Tratamento Intensivo (UTI), e o número de vagas em hospitais públicos e privados era limitado.
Lembro-me bem que o noticiário mostrava a situação da pandemia em vários países e o termo “intensivista” veio à tona, como nunca tinha visto antes. As equipes nos hospitais, seja na Emergência, Enfermarias ou UTIs não podiam parar, mesmo se infectando e com algum medo, precisavam trabalhar todos os dias, com uma carga de serviço bem maior que o normal.
Ao longo daquele ano, a sociedade foi “apresentada” aos intensivistas, com muitos programas de TV e rádio falando sobre este profissional.
Especialidade
A especialidade é relativamente nova, com as primeiras UTIs datando da década de 1970. Foi reconhecida no Brasil como área de atuação no início do século XXI. Ela consiste no cuidado e tratamento dos pacientes mais graves dentro do hospital, aqueles que apresentam disfunções ou mesmo insuficiências orgânicas (a diferença é quando o órgão tem função reduzida ou já não funciona mais).
Seja para monitoração ou para tratamento (principalmente suporte para as insuficiências, como terapia dialítica na insuficiência renal ou ventilação mecânica em casos de insuficiência respiratória), o melhor lugar para estes pacientes é a UTI.
Pela variedade de doenças e de espectros de gravidade, o intensivista tem uma formação clínica e precisa aprender a indicar e instituir muitos destes suportes para manutenção da vida. No entanto, o intensivista também precisa fazer procedimentos, que habitualmente fora da UTI são realizados por cirurgiões.
Infelizmente, nem sempre há vagas suficientes para todos os pacientes com alguma indicação de internação nas unidades fechadas. Assim, para debater e decidir quem entra ou não na UTI, o intensivista também precisa de noções sobre bioética.
Por último, o médico intensivista lidera o time da UTI, que contém enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, farmacêuticos, assistentes sociais e psicólogos. Portanto habilidades não-técnicas e noções de liderança são inerentes à especialidade.
Habilidades e tarefas requeridas
Vamos então listar aspectos do dia a dia das habilidades do médico intensivista:
- choque e insuficiência cardíaca: monitoração e manuseio hemodinâmico invasivo;
- insuficiência respiratória: oxigenoterapia, controle de vias aéreas, modalidades de ventilação mecânica;
- falência renal: tratamento clínico e terapia substitutiva com diálise;
- falência hepática;
- reconhecimento (clínico e radiológico) e tratamento de pacientes com redução da consciência;
- noções de infecções e tratamento da Sepse;
- disfunção do trato gastrointestinal e suporte nutricional artificial;
- tratamento de complicações de pacientes com câncer, politrauma, queimados, intoxicações exógenas e gestantes graves;
- monitoramento de pacientes em pós-operatório de cirurgias médias e grandes;
- realizar procedimentos invasivos, como intubação traqueal, punção vascular, drenagem de tórax, punções de cavidades como pericárdio, pleura e peritônio;
- domínio do uso de ultrassonografia para complementar exame físico e auxiliar procedimentos invasivos;
- noções sobre liderança de pessoas e administração hospitalar;
- noções sobre Bioética e cuidados paliativos;
- ter domínio de aspectos de Segurança e Qualidade de atendimento hospitalar.
Especialização
Mesmo que o médico faça a residência de Medicina Intensiva, sua formação é demorada, porque há necessidade de residência de 2 a 3 anos em especialidades de pré-requisito (ex. Clínica Médica e Cirurgia Geral) e mais 2 a 3 anos dentro da UTI.
Para refinar os conhecimentos e habilidades técnicas, a experiência prática e cursos adicionais de habilidades não-técnicas também requer mais alguns anos de experiência. São poucos os cursos regulares de Medicina Intensiva (seja residências ou pós-graduações) que oferecem esta formação.
Rotina
O profissional pode atuar em regime de plantão, de diarista ou como parecer (interconsulta). De qualquer forma, o médico precisa ter as informações do plantão anterior com o colega que estava atuando – a passagem de plantão.
Este é um aspecto primordial da especialidade: a continuidade do cuidado. Você entende os casos com um colega e entrega para outro médico os status atualizados no próximo período de plantão. Por isso, logo cedo aprendemos que a comunicação é aspecto fundamental do trabalho.
Aprendi com o tempo que há colegas que se comunicam bem com a escuta, ou com a escrita ou a visão, ou até mesmo mais de um método de comunicação. É fundamental que você reconheça qual é seu estilo e também qual é o melhor para o colega que vai receber as suas informações.
Outro ponto importante é o diário da rotina do intensivista para se comunicar com os outros membros do time da UTI. Ele interage durante o exame e o cuidado do paciente dentro do leito, se reúne com a equipe para realizar rondas de segurança e debate/ronda clínica sobre cada caso e para fechar as tarefas no fim do plantão. Ou seja, nenhum intensivista competente atua sozinho.
Relacionamento com as demais equipes
A interação com médicos de outras especialidades que frequentam a UTI também é comum: cirurgiões, clínicos e emergencistas. O intensivistas precisa entender desde cedo que há a necessidade de acolher esses profissionais e saber suas opiniões para o melhor cuidado com os pacientes graves, que têm quadros complexos e muitas facetas de possíveis complicações.
Tratamentos que são “standard” no ambiente ambulatorial ou em enfermarias não são possíveis em pacientes com choque, insuficiência respiratória ou renal. No entanto, é fundamental debater com os especialistas como realizar o tratamento de outra forma ou quando retornar o tratamento habitual.
Relacionamento com o paciente
A interação com o paciente é muitas vezes efêmera, mas pode ser profunda, porque talvez seja o momento mais crítico da sua vida, seja para a sobrevivência ou para a morte. A família também faz parte deste aspecto: os familiares devem ser acolhidos e entender as condutas que fazemos na UTI. E quanto mais transparência, melhor – muitos conflitos são evitados se tudo é bem explicado e há compreensão de todas as partes.
Eu posso dizer que o aspecto humano, com os pacientes e familiares, ainda é campo de aprendizado após décadas de prática, e a compaixão é o que devemos buscar a todo custo. Finalmente, talvez o intensivista nunca mais veja novamente um sobrevivente de alguma doença grave que permaneceu na UTI, mas é possível que o paciente e seus familiares se lembrem do intensivista para sempre.
Trabalhamos por um ideal e não por sucesso, mas subestimamos o reconhecimento do nosso trabalho pelos demais colegas do hospital e pacientes.
Pontos de cuidado
Existem tópicos de preocupação na especialidade:
- déficit de especialistas, principalmente para lugares fora dos grandes centros;
- precarização de equipamentos e leitos de UTI em hospitais, sejam públicos ou privados (a atualização tecnológica é lugar comum dentro das UTIs);
- remuneração compatível para que se trabalhe de forma mais integral em um ou dois lugares e que haja folgas;
- aumento da incidência de “burnout” e outros problemas psicológicos dos intensivistas, com consequentes afastamentos e desistências de atuar na Especialidade.
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