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CirurgiaJUL 2023

Litíase biliar: pedra na vesícula é um passe-livre para a colecistectomia?

A colecistolitíase, definida pela presença de cálculos no interior da vesícula biliar, é uma condição de alta prevalência, acometendo até 20% da população.

Por Leandro Lima

Entre os portadores de litíase biliar, somente um em cada quatro se tornará sintomático ao longo da vida, a uma taxa anual de 2%. A maioria dos indivíduos, sendo assintomática, desconhece ser portadora dessa condição. Contudo, com a solicitação corriqueira dos exames de imagem, a litíase biliar tem se tornado um achado incidental cada vez mais comum. Nesse cenário, o primeiro passo, antes de indicar de forma intempestiva a colecistectomia, deve-se refinar a entrevista médica, com o intuito de destrinchar se há ou não sintomatologia atribuível à colecistolitíase.

Neste quesito, devemos nos lembrar que a dor abdominal, carro-chefe da colecistolitíase sintomática, é uma queixa muito comum e inespecífica, envolvendo condições diversas, entre as quais a doença ulcerosa péptica, a dispepsia funcional, a síndrome do intestino irritável, a intolerância à lactose e as parasitoses intestinais.

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A importância da reflexão quanto aos diagnósticos diferenciais é ilustrada pelo dado inusitado de que a cada 3 pacientes submetidos à colecistectomia, 1 permanece sintomático no pós-operatório. Logo, a atribuição de relação de causalidade entre dor abdominal e litíase biliar não deve ser automática.

Litíase biliar pedra na vesícula é um passe-livre para a colecistectomia

Fisiopatologia e semiologia da cólica biliar

Os cálculos biliares, decorrentes da precipitação da bile supersaturada, são prioritariamente compostos por cristais mono-hidratos de colesterol, sendo os pigmentos enegrecidos de bilirrubinato de cálcio responsáveis por apenas 20% dos casos.

Os principais fatores de risco para a colecistolitíase incluem a idade, sexo feminino, multiparidade, hormonioterapia, exposição à contraceptivos orais, hereditariedade, dieta hipercalórica, rápidos ciclos de mudanças do peso e síndrome metabólica, incluindo obesidade, diabetes mellitus e dislipidemia.

A cólica biliar tem como substrato a contração pós-prandial da vesícula biliar sob o estímulo da colecistocinina em simultaneidade à impactação transitória do infundíbulo da vesícula biliar ou ducto cístico por um cálculo. Logo, espera-se uma dor episódica de padrão visceral verdadeiro, de moderada a forte intensidade intensidade, com progressão gradual dos sintomas até alcançar o platô a partir de 30 minutos, tipicamente localizada em hipocôndrio direito ou epigástrio e eventualmente com irradiação para região subescapular ipsilateral, por vezes associada a náuseas ou vômitos.

Prognóstico da colecistolitíase

Os portadores de colecistolitíase sintomática não desenvolvem complicações em aproximadamente 85% dos casos.

As complicações, embora raras, são potencialmente graves, e entre elas elencamos, com suas respectivas taxas de incidência: colecistite aguda litiásica (0,3 a 0,4%/ano), pancreatite aguda biliar (0,04 a 1,5%/ano), coledocolitíase (0,1 a 0,4%/ano) e colangite aguda (0,3 a 1,6%/ano).

Outras complicações, como a síndrome de Mirizzi (compressão extrínseca da via biliar ou formação de fístulas pela progressão transmural do processo inflamatório a partir da vesícula biliar) e os seus desdobramentos, a exemplo do íleo biliar e síndrome de Bouveret (obstrução da via de saída gástrica por cálculo) são mais raras.

Os médicos devem se manter vigilantes e os pacientes educados quanto ao surgimento dos principais sinais de alarme: dor abdominal persistente por mais de 6 horas, náuseas e vômitos refratários, febre, calafrios, hipotensão, icterícia, colúria, acolia fecal e sinal de Murphy.

Modalidades diagnósticas para a colecistolitíase e suas complicações

O principal alicerce para o diagnóstico da colecistolitíase é a ultrassonografia do andar superior do abdome, com alta especificidade (> 98%) e sensibilidade (> 95%), somadas ao baixo custo e segurança.

Na suspeita de colecistite aguda, a modalidade com maior sensibilidade (97%) é a cintilografia hepatobiliar com ácido iminodiacético (HIDA), a partir do achado de ausência de visibilização da vesícula biliar por obstrução do ducto cístico. Dada a menor disponibilidade e viabilidade do diagnóstico por meio de outras modalidades, fica reservada para casos duvidosos, em virtude do seu excelente valor preditivo negativo.

A coledocolitíase pode ser avaliada com alta acurácia pela colangiorressonância (sensibilidade de 97% e especificidade de 98%) e ultrassonografia endoscópica.

A tomografia de abdome encontra a sua principal indicação na suspeita de pancreatite aguda (PA) biliar.

Reservamos a colangiografia retrógrada endoscópica (CPRE) para a finalidade terapêutica em casos de alta suspeição clínica ou documentação prévia da coledocolitíase pelos métodos anteriormente citados. Trata-se de procedimento invasivo, com risco entre 4 e 10% para complicações graves, como hemorragia, pancreatite aguda, colangite aguda ou perfuração.

Saiba mais: Dor no ombro após cirurgia de vesícula: foi a posição?

Tratamento da colecistolitíase assintomática

A colecistolitíase assintomática, na maioria dos casos, deve ser tratada de forma conservadora, com a educação sobre os sinais e sintomas atribuíveis à doença. Todavia, em alguns cenários, discute-se a indicação da colecistectomia a despeito da ausência de sintomas: 

  1. Cálculos de vesícula biliar maiores do que 3 centímetros, pelo maior potencial de desenvolvimento de carcinoma da vesícula biliar (RR 9,2). Os cálculos biliares crescem, em média, 2 mm/ano, de forma que os grandes cálculos sinalizam um processo inflamatório crônico da vesícula biliar, potencialmente implicado na gênese da malignidade.
  2. Colecistolitíase concomitante aos pólipos da vesícula biliar, pelo maior risco presumido de evolução para carcinoma de vesícula biliar.
  3. Colecistectomia profilática durante a cirurgia bariátrica. Tanto a obesidade quanto a rápida perda ponderal são fatores de risco para o desenvolvimento de litíase biliar. No pré-operatório da cirurgia bariátrica, a prevalência de colecistolitíase pode atingir 21%, número que pode alcançar até 38% no pós-operatório. Ressalta-se que, na sequência de cirurgias bariátricas disabsortivas, o duodeno torna-se inacessível à endoscopia. Portanto, diante de complicação com coledocolitíase, o CPRE deixa de ser opção terapêutica, restando intervenções mais invasivas, como as percutâneas trans-hepáticas ou cirúrgicas com coledocotomia. 
  4. Colecistolitíase na vigência de anemias hemolíticas crônicas, com a anemia falciforme, por acometer pacientes jovens, apresenta alto potencial de desenvolvimento de sintomas e complicações ao longo da vida, além da confusão diagnóstica diante de crises álgicas recorrentes.
  5. Vesícula em porcelana, pelo alto risco de câncer da vesícula biliar.

A terapia de dissolução oral dos cálculos, com o emprego de ácido ursodeoxicólico ou quenodesoxicólico, em decorrência de sua baixa eficácia e alta taxa de recorrência, não encontram indicação rotineira na prática clínica.

Tratamento da colecistolitíase sintomática

A colecistolitíase sintomática deve ser manejada cirurgicamente, por meio da colecistectomia precoce, preferencialmente pela via laparoscópica, por se associar a tempo de internação e convalescência mais breves (-3 e -22 dias, respectivamente).

Até a realização da cirurgia, a abordagem sintomática pode ser realizada com antiespasmódicos, anti-inflamatórios não esteroidais e, se necessário, opioides. A indicação cirúrgica, entretanto, deve ser reservada aos pacientes com maior potencial de resolução sintomática no período pós-operatório.

Os preditores de boa resposta à cirurgia, definidos em coortes prospectivas, incluem: dor episódica e de baixa frequência (≤ um evento/mês); intervalo entre a instalação da dor e a realização da colecistectomia ≤ um ano; dor com duração entre 30 min e 24 horas; e sintomatologia concentrada ao final da tarde ou à noite.

Em algumas situações, a despeito da existência de indicação da colecistectomia, preocupações adicionais surgem quanto às eventuais complicações do procedimento, entre as quais damos ênfase aos idosos frágeis, gestantes e hepatopatas crônicos.

Os idosos com múltiplas comorbidades apresentam taxa aumentada de conversão à cirurgia aberta, tempo operatório prolongado e complicações pós-operatórias mais frequentes. Apesar dessas considerações, um terço deles apresenta recorrência sintomática em 6 meses, entre os quais 40% demandam cirurgias de urgência, associadas ao incremento da morbimortalidade.

As gestantes geralmente são manejadas de forma conservadora, embora a colecistectomia possa ser realizada nos casos mais sintomáticos, com dor intratável ou que desenvolvam complicações. O risco de recorrência sintomática durante a gestação é alto, podendo atingir 69%, por vezes associada a complicações ou internações prolongadas, mas sem incremento aparente da mortalidade fetal.

Os pacientes portadores de doença hepática crônica avançada têm prevalência de colecistolitíase superior à da população geral. A circulação colateral periportal aumenta os riscos de sangramento. Em geral limita-se a colecistectomia videolaparoscópica para as classes funcionais de Child-Pugh A e B, enquanto para a classe C a tendência é o tratamento definitivo por meio do próprio transplante hepático, dada a grande morbimortalidade de outras modalidades cirúrgicas. 

Tratamento das complicações da colecistolitíase

A colecistolitíase sintomática complicada deve ser tratada com a colecistectomia, com o objetivo de profilaxia secundária da recorrência de complicações ameaçadoras à vida.

A coledocolitíase, suspeita na presença de icterícia (bilirrubina total ≥ 4 mg/dL), dilatação na via biliar principal (ducto hepático comum > 6 mm) ou colangite ascendente, geralmente é abordada por meio da CPRE, procedimento em que se realiza a papilotomia e extração dos cálculos. Na sequência do procedimento, preconiza-se a colecistectomia precoce. 

A colecistite aguda, caracterizada por dor persistente em hipocôndrio direito, apresenta-se com sinais locais, como a interrupção dolorosa da inspiração à palpação do ponto cístico (sinal de Murphy) ou presença de dor, sensibilidade ou massa em hipocôndrio direito; e sistêmicos, incluindo febre, elevação de proteína C reativa ou leucocitose.

Lembramos que em idosos e diabéticos a sintomatologia pode ser inespecífica, incluindo anorexia, fadiga, náuseas e vômitos, devendo-se manter uma alta suspeição clínica nessas circunstâncias.

O tratamento consiste em antibioticoterapia (ceftriaxona + metronidazol; ciprofloxacino + metronidazol; ou piperacilina-tazobactam), associada à colecistectomia precoce na primeira semana nos casos leves a moderados. Evita-se o procedimento cirúrgico na janela entre uma e seis semanas, período em que há incremento em três vezes da morbidade cirúrgica. A colecistostomia percutânea é uma alternativa em casos graves, com risco cirúrgico proibitivo, mas carece de literatura robusta.

A PA biliar é presumida na presença de lama ou cálculos biliares à ultrassonografia. Como nas demais etiologias, os critérios diagnósticos incluem a presença de ao menos dois entre os seguintes elementos: (1) dor epigástrica ou em barra no andar superior do abdome, irradiada para o dorso e associada a náuseas e vômitos; (2) aumento de amilase ou lipase acima de três vezes o limite superior da normalidade; e/ou (3) alterações radiográficas, especialmente à tomografia computadorizada de abdome, compatíveis com PA. Em casos de PA leve a moderada, indica-se a colecistectomia na mesma internação. Nos casos de PA grave, habitualmente a colecistectomia é atrasada, sendo realizada a partir de 6 semanas.

Mensagens práticas 

  • Documentação radiológica de litíase biliar não é suficiente para a indicação de colecistectomia.
  • Colecistolitíase assintomática, na maioria dos casos, deve ser abordada de forma conservadora.
  • Colecistolitíase sintomática, especialmente na vigência de sintomas típicos, deve ser abordada cirurgicamente, por meio da colecistectomia, com o objetivo principal de resolução sintomática.
  • Colecistolitíase sintomática complicada deve ser abordada cirurgicamente, por meio da colecistectomia, com o objetivo principal de profilaxia secundária de complicações ameaçadoras à vida.
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Referências bibliográficas

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