Atualmente as soluções cristaloides são preferidas em relação aos coloides para reposição volêmica em geral, seja para tratamento de choque ou reposição regular de líquidos. Já são vários estudos controlados que mostram resultados distintos: alguns com benefício marginal para insuficiência renal e necessidade de hemodiálise com uso de soluções balanceadas e outros estudos sem mostrar diferenças; poucos demonstraram alguma diferença de mortalidade de curto ou médio prazo. As duas soluções mais usadas são o soro fisiológico ou salina (cloreto de sódio a 0,9%) e Ringer lactato. Ainda paira a dúvida se uma intervenção para uso de uma ou outra solução pode afetar desfechos em populações maiores, como se fosse uma estratégia para aplicar em hospitais para melhorar algum desfecho de disfunção renal ou reinternações ou tempo de permanência, ou mesmo mortalidade hospitalar. Se houver uma diferença, mesmo que pequena, seria relevante impor uma aderência ao uso de alguma das soluções em todos os setores do hospital, como emergência, centro cirúrgico, enfermarias e UTI.
Neste sentido, o famoso Canadian Critical Care Trials Group, autores de estudos como o TRICC (que sugeriu a hemotransfusão restritiva na UTI em 1999), múltiplos tratamentos para Covid-19 (remdesivir, plasma de pacientes convalescentes, cloroquina e lopinavir-ritonavir), frequência de tentativas de desmame por dia (JAMA 2024), uso de profilaxia medicamentosa contra úlcera de estresse gástrico (New England Journal em 1994 e 2024), BALANCE (uso de 7 ou 14 dias de antibióticos para tratar bacteremias em 2025) entre outros, realizou um ensaio clínico cruzado, randomizado, que comparou Ringer lactato e solução salina como reposição de líquido “standard” em hospitais em Ontario, no Canadá.
Objetivos e Metodologia
O estudo foi aberto, com dois períodos e duas sequências, randomizado por clusters e cruzado, envolvendo sete hospitais em Ontário, Canadá. Os hospitais usaram uma das soluções por 12 semanas, seguidas por um período de 2 semanas de washout (caracterizado por retirada de obrigação do uso de uma solução) e depois a outra solução por mais 12 semanas. Os pacientes internados logo após o final de cada período foram excluídos. Pacientes menores de 28 dias e aqueles que eram reinternados também foram excluídos.
O desfecho primário foi um composto de morte ou readmissão hospitalar em 90 dias após a admissão inicial. Desfechos secundários incluíram mortalidade em 90 dias, reinternação no mesmo período, tempo de internação, início de hemodiálise em 90 dias, visita à emergência em até 90 dias e alta para instituição diferente de casa (asilo e outras instituições de longa permanência). Os dados foram obtidos de bancos de dados administrativos de saúde. O plano era envolver 16 hospitais, com taxa de internação acima de 1500 pacientes durante o período total de estudo, mas devido à pandemia de COVID-19 os autores interromperam o trabalho após inclusão de 7 instituições. Caso conseguissem ao menos 12 hospitais (com 144 mil internações), o tamanho amostral seria suficiente para demonstrar a diferença de 1% no desfecho composto, com base em dados administrativos do ano completo de 2013. Porém, os autores resolveram analisar os resultados e estabeleceram algumas metas de diferenças entre os grupos para uma menor tamanho de amostra.
Resultados
Foram disponíveis os dados de 43.626 pacientes elegíveis no desfecho primário. Os grupos foram bastante similares, com idade média de 58 anos, quase 60% do sexo feminino, cerca de 40% de internações clínicas e 40% cirúrgicas, 17% de obstetrícia e 0,6% por doenças mentais. O número de comorbidades também foi semelhante nos dois grupos. Quatro hospitais foram randomizados para restringir salina para o primeiro período e 3 com Ringer para o primeiro intervalo. A aderência ao uso de salina foi maior que do Ringer lactato (93,6% versus 78,2%, respectivamente) – o que reflete uso habitual da primeira solução. A incidência do desfecho primário foi de 20,3% com a solução de Ringer com lactato e 21,4% com a solução salina. A diferença ajustada foi de -0,53 pontos percentuais (intervalo de confiança de 95%, -1,85 a 0,79; p=0,35), ou seja, sem diferença significativa. Os resultados para todos os desfechos secundários foram semelhantes: mortalidade em torno de 7%, reinternação em torno de 15%, visitas à emergência 21%, início de hemodiálise em torno de 0,5%. Cerca de 16% dos pacientes tiveram alta para instituições que não eram domicílio. Não foram relatados eventos adversos graves. Subgrupos de sepse (437 pacientes) e traumatismo craniano (90) foram pequenos, mas com resultados iguais entre as duas soluções usadas. Apenas o subgrupo de pacientes com mais de 80 anos (n=7085) teve aparente benefício com Ringer lactato, o que gera apenas especulação se há real benefício.
É claro que o tamanho amostral foi menor que o planejado, mas os autores enfatizam que a diferença de 1% no desfecho composto só apareceria com centenas de milhares de pacientes, o que não parece ser clinicamente significativo para a nossa prática diária no hospital.
Mensagens para o dia-a-dia
Uma política hospitalar para administrar solução de Ringer lactato em vez de solução salina resultou em incidência semelhante de morte ou readmissão hospitalar em 90 dias após a admissão inicial.
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