A concentração de lactato é um dos marcadores mais utilizados na terapia intensiva e, há décadas, é considerada um sinal de hipoperfusão tecidual e mau prognóstico. Entretanto, a compreensão atual mostra que a hiperlactatemia não é sinônimo de hipóxia, e sua interpretação exige uma análise fisiológica mais ampla. A leitura dinâmica dos níveis séricos, isto é, a forma como o lactato se comporta ao longo do tempo, oferece informações mais relevantes do que o valor isolado.

O que sabemos até agora
O lactato é produzido continuamente, mesmo em condições aeróbicas. Situações de aumento do metabolismo ou de estímulo adrenérgico, como sepse, trauma, febre ou uso de agonistas beta-adrenérgicos, podem intensificar a glicólise além da capacidade oxidativa mitocondrial, levando à conversão de piruvato em lactato mesmo com oferta adequada de oxigênio. Assim, a hiperlactatemia pode resultar tanto de hipóxia e hipoperfusão quanto de mecanismos não hipóxicos, como aumento da produção, redução da depuração hepática ou disfunção mitocondrial.
A análise isolada do valor do lactato tem valor prognóstico limitado. A observação seriada, em contrapartida, reflete a trajetória clínica. A queda progressiva dos níveis, com reduções de 10 a 20% nas primeiras horas, costuma indicar melhora da perfusão e resolução do choque. Já valores persistentemente elevados sugerem hipoperfusão contínua, metabolismo celular ineficiente ou falha terapêutica.
Importante: o objetivo da ressuscitação não deve ser simplesmente normalizar o lactato, mas restaurar a perfusão adequada. O esforço para “zerar” o lactato pode induzir sobrecarga volêmica ou uso excessivo de vasopressores, sem benefício real ao paciente.
Incertezas
A interpretação do lactato depende do contexto clínico. No choque séptico, níveis elevados refletem não apenas hipóxia, mas também hipermetabolismo e estimulação beta-adrenérgica. No choque cardiogênico, o aumento está ligado à hipoperfusão sistêmica, podendo demorar a normalizar mesmo após estabilização hemodinâmica, especialmente na presença de congestão hepática. Já no choque hipovolêmico, a correlação com a perfusão é mais direta e a normalização tende a ser rápida após reposição adequada.
Outro erro frequente é atribuir a hiperlactatemia exclusivamente à disfunção hepática. Mesmo na insuficiência moderada, o lactato raramente ultrapassa 4 mmol/L apenas por redução da depuração, pois a produção geralmente também está aumentada. Além disso, a hemodiálise pode reduzir artificialmente o lactato, dificultando a interpretação.
O uso isolado do lactato como marcador de perfusão é insuficiente. Estudos como o ANDROMEDA-SHOCK mostraram que metas baseadas em tempo de enchimento capilar são tão eficazes quanto a ressuscitação guiada por lactato. A combinação de diferentes parâmetros, como o gradiente veno-arterial de CO₂ e a diferença arteriovenosa de oxigênio, permite distinguir melhor a hiperlactatemia de origem hipóxica das causas metabólicas ou adrenérgicas.
Mensagem prática
O lactato deve ser interpretado como um reflexo integrado da perfusão, do metabolismo e da função orgânica. A avaliação seriada é mais informativa que o valor absoluto, e sua redução progressiva sugere recuperação fisiológica. A normalização não deve ser o objetivo terapêutico isolado, mas um sinal complementar de melhora global.
A hiperlactatemia, portanto, não é um marcador único de hipóxia, mas um espelho da complexa resposta metabólica do paciente crítico. Integrar sua leitura ao exame clínico, à hemodinâmica e à evolução global é o caminho para um uso mais seguro e fisiologicamente coerente desse marcador.
Autoria

Yuri Albuquerque
Doutorando em Ciências Médicas pela Universidade de São Paulo (USP) • Residência em Medicina Intensiva pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) • Residência em Clínica Médica ano complementar (R3) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) • Residência em Clínica Médica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) • Médico intensivista rotina do hospital Samaritano Paulista • Título de Especialista em ECMO pela Extracorporeal Life Support Organization (ELSO) • Título de Especialista em Medicina Intensiva pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB)
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