Em todo o mundo, a sepse é uma das principais causas de morbidade e mortalidade infantil, caracterizando-se por respostas inflamatórias desreguladas que podem levar à disfunção de múltiplos órgãos (DMO). Embora as respostas pró-inflamatórias precoces ajudem a conter a infecção, uma fase anti-inflamatória excessiva ou prolongada pode causar imunoparalisia, aumentando a vulnerabilidade a infecções secundárias. A Campanha Sobrevivendo à Sepse de 2021 (Surviving Sepsis Campaign – SSC 2021) destaca a necessidade de intervenção precoce e o uso de biomarcadores para diagnóstico, tratamento e prognóstico.
A ferritina sérica (FS) representa não somente os estoques de ferro no organismo, mas também é um reagente de fase aguda, com aumento de seus níveis séricos em resposta à inflamação, sequestrando ferro e minimizando a disponibilidade de ferro livre para microrganismos patogênicos. No entanto, o excesso de FS pode culminar em sobrecarga de ferro intracelular, favorecendo o estresse oxidativo, proporcionando a produção de espécies reativas de oxigênio, além de danos celulares e teciduais. Portanto, a ferritina pode não apenas expressar uma resposta inflamatória, mas participar ativamente dessa resposta. Estudos mostram que níveis elevados de FS têm sido associados a maior mortalidade e DMO na sepse, denotando seu papel fisiopatológico, sendo uma ferramenta crucial para a identificação precoce da gravidade da doença e mortalidade, estratificação de risco e início rápido do tratamento em crianças criticamente enfermas.
A seguir, sintetizamos um estudo publicado no Pediatric Infectious Disease Journal cujo objetivo foi determinar os níveis de FS, a prevalência de hiperferritinemia em um único centro e sua associação com a mortalidade em crianças com sepse grave.
Veja também: Ferritina além de um marcador inflamatório
Metodologia
De junho de 2023 a junho de 2024, um estudo prospectivo foi conduzido na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) de um hospital universitário terciári em Chandigarh, no norte da Índia.
Foram incluídos pacientes pediátricos de 3 meses a 12 anos com diagnóstico de sepse grave. Os critérios de exclusão foram: crianças com condições crônicas preexistentes (doenças autoimunes, doença hepática crônica, doença renal crônica, malignidade e linfo-histiocitose hemofagocítica familiar) e aquelas já em terapia imunossupressora, incluindo uso crônico de corticoides.
No momento da admissão na UTIP, foi coletado sangue para dosagem estimativa dos níveis séricos de ferritina. A hiperferritinemia foi definida como níveis de ferritina > 500 ng/mL. O desfecho primário foi determinar a associação entre FS e mortalidade. Já os desfechos secundários foram a estimativa dos níveis séricos de ferritina, a prevalência de hiperferritinemia em um único centro, o melhor ponto de corte de FS para predizer mortalidade e a correlação da FS com os escores de gravidade.
Resultados
O estudo incluiu 115 crianças com idade mediana de 3 anos, sendo que 52 eram do sexo masculino (45,2%). Os diagnósticos mais frequentes foram pneumonia adquirida na comunidade (39,1%), tifo rural (13,9%), infecções do sistema nervoso central (SNC) (10,4%), infecção viral multissistêmica (10,4%), dengue (9,6%), sepse gastrointestinal (6,1%) e sepse estafilocócica disseminada (4,3%).
A mediana do nível sérico de ferritina foi de 550 ng/mL e 52% (n = 60) apresentaram hiperferritinemia. Os níveis de FS foram significativamente mais elevados em não sobreviventes em comparação aos sobreviventes (233 vs. 1355, P = 0,01).
As crianças com hiperferritinemia tiveram maior mortalidade (38,3% vs. 16,4%, P = 0,012). Além disso, o melhor ponto de corte da FS para predizer a mortalidade foi de 705 ng/mL (área sob a curva [AUC]: 0,653, sensibilidade e especificidade de 63% cada, P = 0,011). Os pacientes com hiperferritinemia apresentaram maior duração da doença e maior ocorrência de disfunção orgânica (choque, coagulopatia, disfunção hepática, lesão renal aguda e síndrome do desconforto respiratório agudo).
Por fim, a FS foi positivamente correlacionada com escore de risco de mortalidade pediátrica 3 (Pediatric Risk of Mortality-3 – PRISM-3) (ρ = 0,342, P = 0,001), escore vasoativo-inotrópico (Vasoactive-inotropic score – VIS) no dia 1 (ρ = 0,305, P = 0,033) e escore de disfunção orgânica logística pediátrica-2 (Pediatric Elogistic Logistic Organ Dysfunction-2 – PELOD-2) no dia 2 (ρ = 0,204, P = 0,042) e no dia 5 (ρ = 0,235, P = 0,046).
Conclusão
O estudo mostrou que, na população estudada, a hiperferritinemia foi comum em crianças com sepse grave e foi significativamente associada à mortalidade.
Comentários
O estudo é bem interessante e nos mostra que podemos, sim, usar a FS como biomarcador para diagnóstico, tratamento e prognóstico da sepse em pediatria. Chamo a atenção que a coleta foi iniciada em 2023 e finalizada em 2024, ano de publicação do Phoenix Sepsis Score (PSS) para diagnóstico de sepse e choque séptico em pediatria. Segundo o PSS, o termo “sepse grave” (como mencionado no artigo) não é mais recomendado, pois traz complexidade desnecessária e se sobrepõe conceitualmente ao choque séptico. “Choque séptico” é, atualmente, o termo apropriado para casos anteriormente rotulados como “sepse grave” quando acompanhados de hipotensão com necessidade de suporte vasoativo.
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