As diretrizes publicadas pela Sociedade Europeia de Medicina Intensiva (ESICM), em novembro de 2025, representam uma atualização substancial do entendimento clínico e fisiopatológico do choque circulatório, incorporando avanços científicos acumulados desde a publicação anterior. O documento reafirma que o choque deve ser compreendido como uma falência circulatória aguda caracterizada por hipoperfusão tecidual e incapacidade de atender às demandas metabólicas celulares, independentemente da presença obrigatória de hipotensão. Essa definição, ancorada em fundamentos fisiológicos robustos, posiciona a perfusão como o eixo central da avaliação clínica, deslocando o foco da pressão arterial isolada para uma análise integrada da oferta e utilização de oxigênio.
A diretriz enfatiza que as manifestações clínicas tradicionais — como oligúria, alteração do estado mental e hipoperfusão cutânea — permanecem essenciais para o reconhecimento inicial da síndrome. Entretanto, a variabilidade interobservador e a limitada sensibilidade desses parâmetros motivam a incorporação sistemática de marcadores objetivos. O tempo de enchimento capilar (CRT) ocupa papel de destaque nessa abordagem, sendo recomendado como indicador primário de perfusão periférica, complementado por observações de pele fria e moteamento. Essa ênfase reflete a crescente valorização dos sinais clínicos periféricos como janelas fisiológicas da microcirculação, uma vez que alterações macro-hemodinâmicas nem sempre se traduzem em repercussões microcirculatórias.

Análise metabólica
A análise metabólica também é fortemente integrada ao modelo proposto. A mensuração seriada da saturação venosa central de oxigênio (ScvO₂) é indicada como ferramenta-chave para avaliar o equilíbrio entre oferta e consumo de oxigênio. Do mesmo modo, o gradiente veno-arterial de CO₂ (Pv-aCO₂) é recomendado como marcador complementar para identificar inadequação do débito cardíaco em relação às necessidades metabólicas. A diretriz destaca que ambos os parâmetros fornecem informações dinâmicas e sensíveis, sobretudo em cenários nos quais o lactato pode se elevar por mecanismos não puramente hipoperfusionais, como disfunção mitocondrial ou dependência aumentada da via glicolítica. Assim, constrói-se um modelo de monitorização que é simultaneamente clínico, hemodinâmico e metabólico.
Terapia Volêmica
No campo da terapia volêmica, o documento propõe uma abordagem inteiramente fisiológica, alinhada às evidências contemporâneas de que a responsividade a fluidos é altamente variável entre pacientes com choque. A diretriz sustenta que a administração cega de fluidos, baseada apenas em pressões de enchimento ou em parâmetros estáticos, é fisiologicamente inadequada e potencialmente deletéria. Dessa forma, recomenda-se que a responsividade a fluidos seja avaliada sistematicamente antes de qualquer expansão, sobretudo após a ressuscitação inicial. Variáveis dinâmicas — como variação da pressão de pulso, variação do volume sistólico, o teste de elevação passiva das pernas (PLR) e o teste de oclusão expiratória — são destacadas como as ferramentas de maior valor preditivo, superando marcadores estáticos como a pressão venosa central.
Além disso, o guideline sublinha a distinção conceitual entre indicar fluido e avaliar sua eficácia. Mesmo quando um paciente demonstra preditores positivos de responsividade, a expansão volêmica só deve prosseguir se houver melhora documentada do débito cardíaco ou do volume sistólico. Esse ponto técnico reforça a visão de que a fluidoterapia deve ser encarada com o mesmo rigor farmacológico aplicado a outras terapias agudas, reconhecendo-se seu potencial de toxicidade, especialmente no contexto de congestão venosa sistêmica, edema pulmonar ou síndrome compartimental abdominal.
Monitorização hemodinâmica
A monitorização hemodinâmica, por sua vez, é apresentada como um pilar estruturante das estratégias terapêuticas em choque. A inserção de cateter arterial é recomendada para todos os pacientes em uso de vasopressores ou com choque refratário, permitindo a análise contínua de parâmetros como pressão arterial média, pressão diastólica e pressão de pulso. Esses componentes são fundamentais para diferenciar perfis fisiopatológicos: no choque distributivo, predomina pressão diastólica reduzida com pressão de pulso preservada; nos choques cardiogênico e hipovolêmico, a pressão de pulso tende a ser diminuída, enquanto a pressão diastólica se mantém relativamente elevada. Assim, a pressão arterial é reinterpretada como uma matriz de padrões fisiológicos, e não apenas como um número-alvo.
A pressão venosa central, embora não confiável como preditor de responsividade a fluidos, mantém relevância diagnóstica quando interpretada em conjunto com outras variáveis hemodinâmicas. Sua utilidade é particularmente destacada em cenários de suspeita de hipertensão intratorácica, disfunção de ventrículo direito ou elevação da pressão intra-abdominal. Essa visão integrada reflete uma compreensão mais madura e fisiológica da CVP, superando interpretações simplistas do passado.
A ecocardiografia aparece como a ferramenta diagnóstica e terapêutica central na avaliação do paciente em choque. O documento recomenda sua utilização como modalidade de primeira linha para elucidação etiológica e para caracterização do fenótipo hemodinâmico. A diretriz reúne evidências de que a ecocardiografia influencia diretamente condutas clínicas em grande parte dos casos avaliados, incluindo ajuste de inotrópicos, titulação de vasopressores, correção de hipovolemia ou interrupção de fluidos, modificação da estratégia ventilatória e diagnóstico de causas mecânicas. Além disso, ressalta-se o papel prognóstico dos fenótipos ecocardiográficos de disfunção ventricular esquerda e direita, sobretudo no contexto de choque séptico, nos quais tais alterações apresentam correlação independente com mortalidade.
Conclusão
Por fim, as diretrizes consolidam um modelo de cuidado baseado em integração fisiológica, monitorização multimodal e intervenções guiadas por objetivos dinâmicos. A argumentação apresentada é coerente com o corpo de evidências sintetizado e com a experiência acumulada dos especialistas envolvidos, propondo uma prática clínica que privilegia precisão diagnóstica, individualização terapêutica e reavaliação contínua. Essa abordagem integrada, que articula perfusão celular, hemodinâmica sistêmica e fenotipagem ecocardiográfica, traduz um avanço significativo no manejo dos pacientes com choque e estabelece um novo padrão de referência para a terapia intensiva contemporânea.
Autoria

Hiago Bastos
Graduação em Medicina pela Universidade Ceuma (2016), como bolsista integral do PROUNI ⦁ Especialista em Terapia Intensiva no Programa de Especialização em Medicina Intensiva (PEMI/AMIB 2020) no Hospital São Domingos ⦁ Fellowship in Intensive Care at the Erasme Hospital (Bruxelles, Belgium) ⦁ Especialista em ECMO pela ELSO ⦁ Médico plantonista na UTI II do Hospital Municipal Djalma Marques desde 2016, na UTI do Hospital São Domingos desde 2018 e Coordenador da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes do Hospital Municipal Djalma Marques desde 2017 ⦁ Fundador e ex-presidente da Liga Acadêmica de Medicina de Urgência e Emergências do Maranhão (LAMURGEM-MA) ⦁ Experiência na área de Emergências e Terapia intensiva.
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