Durante o Congresso Brasileiro de Medicina Intensiva (CBMI 2025), o professor Patrick Croskerry, referência mundial em segurança diagnóstica e raciocínio clínico, conduziu uma discussão provocadora sobre o papel dos vieses cognitivos e da metacognição nas decisões médicas em ambientes de alta complexidade. Segue os pontos abordados durante a discussão.
Raciocínio clínico
O processo diagnóstico é uma das atividades cognitivas mais complexas da medicina. Em um ambiente de alta pressão, como a UTI, o médico precisa integrar grande volume de informações, frequentemente incompletas, e tomar decisões rápidas que podem ter consequências imediatas. Nessa realidade, o raciocínio tende a alternar entre dois sistemas: um rápido, intuitivo e automático (Sistema 1), e outro mais lento, analítico e deliberado (Sistema 2). Embora o primeiro seja essencial para a agilidade, sua predominância aumenta o risco de erros diagnósticos, que representam uma das principais causas de redução da segurança do paciente.
Estudos mostram que a maioria dos erros clínicos graves está relacionada a falhas cognitivas, e não apenas a limitações de conhecimento. A sobrecarga emocional, a fadiga e a confiança excessiva em padrões prévios favorecem decisões automáticas e pouco reflexivas. Desenvolver metacognição, a capacidade de pensar sobre o próprio pensamento, é o primeiro passo para reconhecer esses desvios e fortalecer a segurança diagnóstica.
Principais vieses na prática da terapia intensiva
O viés de ancoragem reflete a tendência de fixar-se em uma hipótese inicial e resistir a revisá-la mesmo diante de novas evidências. O viés de confirmação, por sua vez, leva o profissional a buscar seletivamente informações que reforcem sua hipótese prévia, ignorando dados que a contradizem. Esses dois vieses frequentemente atuam em conjunto: o clínico ancora-se em um diagnóstico e, em seguida, interpreta novos achados apenas sob a ótica de confirmá-lo, reduzindo a flexibilidade cognitiva e comprometendo a acurácia diagnóstica.
Na prática, esse ciclo pode atrasar o reconhecimento de complicações, prolongar o uso de terapias ineficazes e aumentar o risco de eventos adversos. Croskerry enfatizou que reconhecer o momento em que o raciocínio se torna rígido é uma habilidade essencial para preservar a segurança do paciente
Metacognição como estratégia corretiva
A metacognição funciona como um mecanismo interno de segurança cognitiva. Ao monitorar o próprio raciocínio, o profissional reconhece quando está raciocinando de forma automática e reativa. Perguntas simples como “O que mais poderia ser?” ou “Que evidência enfraqueceria minha hipótese?” funcionam como freios cognitivos, que reativam o pensamento analítico e permitem corrigir trajetórias diagnósticas antes que resultem em dano.
A incorporação de rotinas de reflexão, como pausas diagnósticas, rounds cognitivos e revisões em equipe, fortalece a cultura de segurança e reduz a incidência de erros relacionados ao pensamento intuitivo não supervisionado.
Limitações e desafios
Um dos pontos centrais do debate foi a ausência de ensino estruturado sobre raciocínio clínico e metacognição nas escolas médicas brasileiras. Enquanto as competências técnicas e protocolares são amplamente valorizadas, o treinamento do pensamento clínico reflexivo ainda é incipiente. Essa lacuna dificulta o reconhecimento precoce dos próprios vieses e limita a capacidade de autorregulação cognitiva.
Paradoxalmente, médicos experientes podem ser ainda mais vulneráveis ao viés de excesso de confiança, acreditando que a experiência os torna imunes ao erro. Essa ilusão de precisão cognitiva aproxima-se do efeito Dunning–Kruger, no qual a percepção de competência supera a consciência das próprias limitações.
Mensagens práticas
- Todo raciocínio está sujeito a vieses, independentemente do nível de experiência.
- Erros diagnósticos comprometem diretamente a segurança do paciente e exigem estratégias sistemáticas de prevenção cognitiva.
- Promover rounds de raciocínio e autópsias cognitivas após decisões críticas fortalece a cultura de aprendizado e segurança.
- A diversidade de pensamento da equipe multiprofissional funciona como importante ferramenta de proteção contra vieses individuais.
- Instituições devem fomentar uma cultura de segurança cognitiva, na qual questionar hipóteses seja um ato de maturidade intelectual e não de confronto hierárquico.
- A liderança médica reflexiva é essencial para criar ambientes psicologicamente seguros, estimulando humildade cognitiva e aprendizado contínuo.
Autoria

Yuri Albuquerque
Doutorando em Ciências Médicas pela Universidade de São Paulo (USP) • Residência em Medicina Intensiva pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP) • Residência em Clínica Médica ano complementar (R3) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) • Residência em Clínica Médica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) • Médico intensivista rotina do hospital Samaritano Paulista • Título de Especialista em ECMO pela Extracorporeal Life Support Organization (ELSO) • Título de Especialista em Medicina Intensiva pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB)
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