A temática sobre o rodízio de medicamentos analgésicos e sedativos em terapia intensiva pediátrica tem sido bastante discutida nos últimos anos. No XXIX Congresso Brasileiro de Medicina Intensiva (CBMI) 2024, o Dr. Cristian Tonial (Porto Alegre/RS) ministrou a palestra “Rodízio de sedoanalgesia: como evitar tolerância?”. Os pontos de destaque desta apresentação estão sintetizados a seguir.
O palestrante iniciou sua aula comentando sobre os desafios de manejo do paciente pediátrico criticamente enfermo e a necessidade de medicamentos analgésicos e sedativos em infusão contínua para aliviar a dor e a ansiedade destas crianças sob cuidados intensivos. Muitas vezes, todavia, esses pacientes acabam recebendo diversos medicamentos e até mesmo bloqueadores neuromusculares.
Opioides na doença crítica
O Dr. Cristian mencionou uma importante revisão publicada em 2019 no periódico The New England Journal of Medicine sobre o uso de opioides na doença crítica. Em terapia intensiva, os pacientes frequentemente apresentam elevada inflamação e muito estresse pós-cirúrgico e, por isso, acabam recebendo doses muito elevadas de opioides, o que pode levar ao desenvolvimento de tolerância, dependência, síndrome de abstinência iatrogênica (dificultando a retirada dessa classe medicamentosa) e, inclusive, à dor crônica e à hiperalgesia induzida por opioides.
Durante a cascada da inflamação, a administração de uma ou duas doses de opioides, por exemplo, mantém a normalidade desta cascada. No entanto, com o aumento do uso, os receptores presentes na medula e outras partes do corpo se sensibilizam, sofrem dessensibilização, vão internalizando, vão sendo reciclados e devolvidos para a periferia. Durante o fenômeno de tolerância, o paciente necessita de mais doses do medicamento para a obtenção do mesmo efeito de analgesia. Com o uso muito prolongado de opioides, surgem outras cascatas inflamatórias pelo insulto ou pelos receptores de opioides que vão integrar outros biomarcadores e, neles, está incluído o NMDA (N-metil-D-aspartato). Toda a cascata leva a um estado de hiperalgesia (sensação exagerada de dor) e alodinia (sensação dolorosa em situações que, normalmente, não ocasionam dor, como o toque).
Segundo o Dr. Cristian, ao utilizar opioide por um curto período e com baixas doses, o paciente apresenta bom efeito analgésico. O paciente que passa por um insulto inflamatório acaba necessitando de mais doses de opioides. Portanto, a inflamação tem um papel importante na quantidade de opioides que o paciente recebe. Quando o tempo se prolonga, a analgesia já não é tão suficiente, o paciente acaba precisando de aumento de doses. Essas doses acabam não sendo mais eficazes. Para minimizar estes efeitos, a literatura sugere o uso de escalas de avaliação de dor, o uso de opioides intermitentes ao invés do uso contínuo, a rotação de opioides, o uso de remifentanil em analgesia de curta duração, a redução do uso de benzodiazepínicos (pois potencializam a tolerância aos opioides), evitar doses altas, usar medicamentos poupadores de opioides (adjuvantes) e o uso de metadona. Com relação a outros fármacos, são citados: cetamina (que atua no receptor NMDA), alfa adrenérgicos (clonidina e dexmedetomidina) e gabapentina (dor neuropática).
Com relação aos bloqueios nervosos, a analgesia peridural pode ser feita (o palestrante referiu ter boa experiência na prática, o que reduz bastante a utilização de opioides). Por fim, para a retirada, a metadona está indicada, além de outros medicamentos adjuvantes. A redução deve ser lenta e gradual e com o uso de escalas.
A inflamação tem papel fundamental no aumento das doses de opioides. O uso de antiinflamatórios está indicado por um curto período, além de analgésicos simples, como paracetamol e dipirona. É importante lembrar que a literatura tem mostrado a importância de protocolos que incluam a avaliação também de delirium. Ademais, as medidas não farmacológicas são cruciais na abordagem da dor (estas medidas são mais difundidas na neonatologia, mas também podem ser aplicadas com sucesso em crianças maiores).
Em suma:
- O opioide é o medicamento de primeira linha para o tratamento da dor em Unidades de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP);
- Analgésicos e anti-inflamatórios são também indicados, tanto para associar o efeito analgésico quanto para reduzir a quantidade de opioides;
- A interrupção diária da sedação não é recomendada em pediatria (inclusive, pode trazer complicações, como a retirada de dispositivos);
- Os alfa agonistas são os sedativos de primeira escolha para pacientes em ventilação mecânica;
- O propofol também é indicado, com baixa evidência, por até 48 horas (tempo limitado devido ao risco de síndrome de infusão do propofol) – o palestrante comentou que, em sua unidade, o propofol é utilizado por um período superior a 48 horas, com controle laboratorial (ele disse que tem tido boas respostas em crianças refratárias a outros fármacos);
- A cetamina é indicada em pacientes que estão pouco sedados (baixo nível de evidência) como medicamento poupador de opioides. O Dr. Cristian relatou que tem usado bastante em doses baixas (2,5 a 10 mcg/kg/min). Em geral, os efeitos colaterais do uso de cetamina são bem toleráveis;
- Em pacientes com anemia falciforme, o Dr. Cristian referiu estar usando, com sucesso, cetamina e lidocaína (com base em um artigo que utilizou essa estratégia em quatro pacientes). Ambas as drogas modulam os receptores NMDA que fazem parte da cascata decorrente do uso prolongado de opioides;
- Com relação à tolerância a benzodiazepínicos: a clonidina pode ser usada em pacientes que estavam usando mais de 5 dias de midazolam e morfina (0,2 a 2,0 mcg/kg/h). É uma alternativa quando a dexmedetomidina não está disponível.
Para finalizar, o palestrante mostrou o estudo de 2019 de Sanavia e colaboradores realizado na Espanha, sobre o uso de rodízio de analgosedação em crianças em UTIP a cada 4 dias de uso. O estudo é bem conhecido, mas também recebeu muitas críticas metodológicas, pois o protocolo foi aplicado em somente 35% dos pacientes. Apesar desta limitação, é um estudo que se destaca por ser o único a propor a assunto. Entre os desfechos dos pacientes que seguiram o protocolo estão a menor ocorrência de síndrome de abstinência, menor uso de opioides, menor uso de benzodiazepínicos, menor uso de propofol e menor tempo de internação. Ademais, houve uma redução de morfina de quase 20% e de midazolam de quase 60%.
Leia mais: Rotatividade de Medicamentos Sedativos e Analgésicos em Crianças Graves
Mensagens finais:
- O uso de protocolos com escalas é indicado;
- Uma excelente opção de analgosedação para pacientes em UTIP é morfina associada a alfa-2-agonista. Se o paciente não ficar bem adaptado, pode ser associada a cetamina (ou fazer troca). Se o paciente ainda se mantiver mal adaptado, pode ser iniciado o propofol;
- Sempre usar a menor dose possível de analgésicos e sedativos;
- Talvez o rodízio de analgosedação seja factível e eficiente.
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